Rádio Urutau: Última edição, bloco 1

A estática do rádio se assemelha ao zumbido de uma abelha. Dois dos pouquíssimos sons que restaram durante aquela era curiosa – à parte as transmissões da Rádio Urutau. A Locutora, peça central daquele período, resistiu ao menos pelo tempo de suas transmissões como o único ser humano na superfície da Terra – ou da América.  Sim, escreveu memórias, mas delas não nos ocuparemos: seu principal legado foi a iniciativa de colocar no ar, aprendendo de manuais de radioamadorismo, a antiga rádio da Universidade. Nos estúdios da agora Rádio Urutau, em busca de um semelhante perdido pela querência, a Locutora transmitiu diligentemente suas notícias inventadas, leu cartas de amor e falou de si. A seguinte transcrição em laudas radiofônicas de seu último programa documenta de forma inconteste a capacidade de elaboração da Locutora e sua crescente adaptação — ou autoabandono — em um mundo em que se viu só.  ****RÁDIO URUTAU**** EDIÇÃO  LOC - Esta é mais uma transmissão da sua ZE ÍPSILON CÁ DUZENTOS E OITENTA RÁDIO URUTAU, diretamente da antena omnidirecional dos estúdios localizados na RUA SARMENTO LEITE./ Quando se está em lugar nenhum, não se olha para o relógio./ O que é dizer que ainda não é nem o fim, nem o início do mundo; é apenas um pouco tarde./ Em PORTO ALEGRE, o clima é o de sempre, mas pode mudar: num dia bom, avista-se o fim./ Hoje, nem com faróis de neblina.// TEC – SOBE TRILHA [SÃO JORGE – JUÇARA MARÇAL.MP3] LOC – A saudade de hoje é: sorvete./ Na época em que isso era possível, tinha pavor de ir ao supermercado./ Minha recompensa acabava sendo um MILK-SHAKE de baunilha, ou um sorvete de casquinha./ Não lembro quando exatamente comecei a colocar sal./ Sei que era adolescente e salguei o MILK- SHAKE de uma amiga não lembro por quê./ Talvez só por ser adolescente, portanto boba.../ Mas quando ela provou, me olhou fundo e disse que aquilo era a melhor coisa que tinha provado na vida./ Não acreditei e fui tomar também./ Que coisa fantástica./ Não era sempre que eu colocava sal, porque às vezes dividia a casquinha ou despejava um resto de MILK-SHAKE para o cachorro./ MARY OLIVER escreveu que um cão jamais poderá contar o que sabe dos aromas do mundo — mas que você sabe, só de vê-lo, que você não sabe quase nada./ A saudade de hoje talvez seja assistir a um cachorro tomando sorvete de casquinha do MCDONALD’S.// TEC – SOBE TRILHA [DOG – NAT JOHNSON.MP3] LOC - Agora nada mais serve para além de si./ Nem eu mesma./ Na verdade, talvez./ Senão não estaria aqui./ Antes eu não era mais feliz, mas vivia mais./ Depois passei como a entender o que foi essa vida que tinha construído até o momento e decidi viver com mais cuidado, o que por um tempo pensei que fosse menos, mas não chega a ser./ Agora isso./ Será que a vida um dia chegou perto de estar completa?/ Eu sonhava com plantas e animais, com […]