Nossos Mortos | Parêntese

Guto Leite: Um clássico?

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Guto Leite: Um clássico? Muitos já se perguntaram sobre o que seria um clássico. Ítalo Calvino disse que um clássico nunca termina de dizer aquilo que tinha para dizer. Borges disse que clássico é aquele livro que uma nação ou grupo lê como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de infinitas interpretações. Essas duas definições cercam aspectos composicionais do que é tomado por clássico, como também sugerem que um clássico exerce certa função social para uma comunidade. Pois bem, e o que seria, então, um ex-clássico? O que acontece com um livro que deixou de ser tomado como clássico? Essas questões me tomaram de assalto quando fui convidado a falar sobre Meu pé de laranja-lima (1968), de José Mauro de Vasconcelos (1920-1984). O autor teria feito cem anos no último dia 26 de fevereiro. Meu pé de laranja-lima seria um ex-clássico?  Sem aborrecer muito o leitor, queria contar um pouco da minha história com esse romance. Nasci em 1982 e, como minha mãe foi diretora de escola, sempre estudei em colégios particulares como bolsista. Esse livro nunca foi comentado em sala de aula ou solicitado como leitura. Ele também parecia estar fora do radar dos meus tios mais novos, nascidos dos anos setenta pra cá. Por outro lado, para os meus pais – nascidos em 1955 e 1958 – e para os meus tios mais velhos, o romance de Vasconcelos não só era citado constantemente, quando o assunto era perspectiva infantil, imaginação, miséria etc., como era tomado como índice de alguma erudição. (O recorte geracional não é homogêneo, minha esposa, de 1987, leu o romance numa escola pública no interior de São Paulo.)  Por conta disso, inclusive, para entrar no círculo dos que já tinham lido o livro na minha família, decidi por conta própria ler o romance ali por 1992/1993 – tinha um exemplar na estante de casa (quando busquei essas memórias pra escrever o texto, meu pai, emocionado, foi procurar o livro e me mandou no whats: “Não encontrei, deve ter ficado com a sua mãe”). Eu me lembro bem do que me emocionou naquela época: as agruras do pai desempregado de Zezé, a cena da precária mudança de casa da família, a mãe que de tanto trabalho era figura apagada no romance, as dificuldades do menino em seguir as regras sendo tão inteligente (que eu associava um pouco ao meu irmão). A última coisa que me chamou a atenção era que ele conversava com um pé de laranja lima. (Depois da leitura, emendei O príncipe e o mendigo e Tom Sawyer, que eu ligava diretamente às peripécias de Zezé.) Na faculdade de Letras (Unicamp), um tanto mais tarde, nem uma única vez o livro foi mencionado. Na especialização, no mestrado e no doutorado em Literatura Brasileira (UFRGS) não me lembro de qualquer movimento de leitura ou estudo de Meu pé de laranja-lima. Essa volta toda é pra dizer que, ao final da minha trajetória acadêmica, comecei a desconfiar que meus pais nem tivessem […]

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Muitos já se perguntaram sobre o que seria um clássico. Ítalo Calvino disse que um clássico nunca termina de dizer aquilo que tinha para dizer. Borges disse que clássico é aquele livro que uma nação ou grupo lê como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de infinitas interpretações. Essas duas definições cercam aspectos composicionais do que é tomado por clássico, como também sugerem que um clássico exerce certa função social para uma comunidade. Pois bem, e o que seria, então, um ex-clássico? O que acontece com um livro que deixou de ser tomado como clássico? Essas questões me tomaram de assalto quando fui convidado a falar sobre Meu pé de laranja-lima (1968), de José Mauro de Vasconcelos (1920-1984). O autor teria feito cem anos no último dia 26 de fevereiro. Meu pé de laranja-lima seria um ex-clássico?  Sem aborrecer muito o leitor, queria contar um pouco da minha história com esse romance. Nasci em 1982 e, como minha mãe foi diretora de escola, sempre estudei em colégios particulares como bolsista. Esse livro nunca foi comentado em sala de aula ou solicitado como leitura. Ele também parecia estar fora do radar dos meus tios mais novos, nascidos dos anos setenta pra cá. Por outro lado, para os meus pais – nascidos em 1955 e 1958 – e para os meus tios mais velhos, o romance de Vasconcelos não só era citado constantemente, quando o assunto era perspectiva infantil, imaginação, miséria etc., como era tomado como índice de alguma erudição. (O recorte geracional não é homogêneo, minha esposa, de 1987, leu o romance numa escola pública no interior de São Paulo.)  Por conta disso, inclusive, para entrar no círculo dos que já tinham lido o livro na minha família, decidi por conta própria ler o romance ali por 1992/1993 – tinha um exemplar na estante de casa (quando busquei essas memórias pra escrever o texto, meu pai, emocionado, foi procurar o livro e me mandou no whats: “Não encontrei, deve ter ficado com a sua mãe”). Eu me lembro bem do que me emocionou naquela época: as agruras do pai desempregado de Zezé, a cena da precária mudança de casa da família, a mãe que de tanto trabalho era figura apagada no romance, as dificuldades do menino em seguir as regras sendo tão inteligente (que eu associava um pouco ao meu irmão). A última coisa que me chamou a atenção era que ele conversava com um pé de laranja lima. (Depois da leitura, emendei O príncipe e o mendigo e Tom Sawyer, que eu ligava diretamente às peripécias de Zezé.) Na faculdade de Letras (Unicamp), um tanto mais tarde, nem uma única vez o livro foi mencionado. Na especialização, no mestrado e no doutorado em Literatura Brasileira (UFRGS) não me lembro de qualquer movimento de leitura ou estudo de Meu pé de laranja-lima. Essa volta toda é pra dizer que, ao final da minha trajetória acadêmica, comecei a desconfiar que meus pais nem tivessem […]

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