Parêntese | Resenha

Guto Leite: Vila Sapo, de José Falero

Change Size Text
Guto Leite: Vila Sapo, de José Falero Aprendi com o amigo Guilherme Botelho que precisamos estar atentos não só no que as regiões periféricas denunciam pela literatura de seus autores e autoras, mas também no que essas obras anunciam. Ou seja, perceber a violência, a exclusão, a pobreza, em linhas gerais, a falência da formação da sociedade brasileira moderna, mas principalmente perguntar pela visão de mundo expressa na forma, na maneira como o conto, o poema, o rap etc. se apresentam, na linguagem trabalhada etc.. Até porque, me ensinou o Guilherme, as denúncias são o cotidiano, o comum, de alguns bairros e comunidades do grandes centros urbanos; ou como expresso nesta extraordinária passagem do conto “atotô”, de Vila Sapo: Então, mano, tipo, pra gente que nem nós, não é fácil, não rola esse barato de associar automaticamente uma saraivada com outro bagulho, outro acontecimento. Pra nós, uma saraivada é igual uma brisa que bate por bater; uma saraivada é só uma coisa que acontece, sem chamar muito a nossa atenção, e a gente não gasta muito tempo pensando nela. O que interessa é o anúncio, é entender o que está sendo proposto, o que os autores anunciam, criticamente, como experiência histórica tornada forma estética – experiências e formas essas que desestabilizam nossas (de classe média, digamos) experiências e formas costumeiras. Vila Sapo, de José Falero, é antes de tudo, grande literatura! Contos fluidos que levam o leitor adiante, linguagem eletrizada combinando termos particulares do universo narrado e formato exigente, histórias que não demonstram qualquer ilusão quanto ao estado de coisas e escolhas que não fazem com que a forma resolva ou sublime o mundo – alguns enredos terminam sem que saibamos de resoluções importantes, como na vida. Enfim, é daqueles achados que o leitor procura, procura e se extasia quando acha. Pensando nas denúncias, lá estão, infelizmente, a miséria, a falta de perspectiva, o crime, a violência e todos os elementos que reconhecemos como resultado de uma sociedade insustentavelmente desigual. Quero frisar, contudo, alguns anúncios do livro, todos muito valiosos: as experiências humanas – a amizade, o amor, o humor, o desejo, a indignação, a transmissão de conhecimentos etc. – que resistem à condição constante de perigo (não raro, contra a verossimilhança do leitor acostumado à exploração populista da violência na periferia, as personagens vão conversar sobre suas vidas em situações que pareciam não afeitas ao diálogo); a reflexão aguda e desvencilhada das simplificações tributárias a arranjos pequeno-burgueses –  O que tem no mundo, que faz as pessoa se tratar feito bicho? Eu tratei a tia que nem bicho. Eu amarrei ela com arame, tapei a boca dela com fita e deixei ela no porta-malas, feito bicho. Agora era a minha vez: os porco tavam me caçando, feito bicho. E eu tava ali embaixo daquela casa, feito bicho. O que que tem no mundo, que as pessoa se trata que nem bicho? (do conto “dignidade-relâmpago”) –; e certa disposição para a vida de narradores que sabem estar “contrariando as estatísticas” e por isso equilibram com mais sabedoria […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

Aprendi com o amigo Guilherme Botelho que precisamos estar atentos não só no que as regiões periféricas denunciam pela literatura de seus autores e autoras, mas também no que essas obras anunciam. Ou seja, perceber a violência, a exclusão, a pobreza, em linhas gerais, a falência da formação da sociedade brasileira moderna, mas principalmente perguntar pela visão de mundo expressa na forma, na maneira como o conto, o poema, o rap etc. se apresentam, na linguagem trabalhada etc.. Até porque, me ensinou o Guilherme, as denúncias são o cotidiano, o comum, de alguns bairros e comunidades do grandes centros urbanos; ou como expresso nesta extraordinária passagem do conto “atotô”, de Vila Sapo: Então, mano, tipo, pra gente que nem nós, não é fácil, não rola esse barato de associar automaticamente uma saraivada com outro bagulho, outro acontecimento. Pra nós, uma saraivada é igual uma brisa que bate por bater; uma saraivada é só uma coisa que acontece, sem chamar muito a nossa atenção, e a gente não gasta muito tempo pensando nela. O que interessa é o anúncio, é entender o que está sendo proposto, o que os autores anunciam, criticamente, como experiência histórica tornada forma estética – experiências e formas essas que desestabilizam nossas (de classe média, digamos) experiências e formas costumeiras. Vila Sapo, de José Falero, é antes de tudo, grande literatura! Contos fluidos que levam o leitor adiante, linguagem eletrizada combinando termos particulares do universo narrado e formato exigente, histórias que não demonstram qualquer ilusão quanto ao estado de coisas e escolhas que não fazem com que a forma resolva ou sublime o mundo – alguns enredos terminam sem que saibamos de resoluções importantes, como na vida. Enfim, é daqueles achados que o leitor procura, procura e se extasia quando acha. Pensando nas denúncias, lá estão, infelizmente, a miséria, a falta de perspectiva, o crime, a violência e todos os elementos que reconhecemos como resultado de uma sociedade insustentavelmente desigual. Quero frisar, contudo, alguns anúncios do livro, todos muito valiosos: as experiências humanas – a amizade, o amor, o humor, o desejo, a indignação, a transmissão de conhecimentos etc. – que resistem à condição constante de perigo (não raro, contra a verossimilhança do leitor acostumado à exploração populista da violência na periferia, as personagens vão conversar sobre suas vidas em situações que pareciam não afeitas ao diálogo); a reflexão aguda e desvencilhada das simplificações tributárias a arranjos pequeno-burgueses –  O que tem no mundo, que faz as pessoa se tratar feito bicho? Eu tratei a tia que nem bicho. Eu amarrei ela com arame, tapei a boca dela com fita e deixei ela no porta-malas, feito bicho. Agora era a minha vez: os porco tavam me caçando, feito bicho. E eu tava ali embaixo daquela casa, feito bicho. O que que tem no mundo, que as pessoa se trata que nem bicho? (do conto “dignidade-relâmpago”) –; e certa disposição para a vida de narradores que sabem estar “contrariando as estatísticas” e por isso equilibram com mais sabedoria […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.