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Heitor Hentschel: A enchente de 1941

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Heitor Hentschel: A enchente de 1941 As famílias de meus antepassados moravam no Quarto Distrito de Porto Alegre, onde hoje estão os bairros de São Geraldo, São João e Navegantes. Menos de dois anos depois de se casarem, meus pais abandonaram as vizinhanças do Quarto Distrito e construíram uma casa no bairro Petrópolis, cerca de quatro quadras além do fim da linha do bonde. Meu avô materno achava um mau negócio morar tão longe do centro. O ideal, segundo ele, seria morar nas ruas São Paulo, Pará ou Bahia, recém-urbanizadas e perto dos recursos necessários para a vida. Meus avós moravam na rua Moura Azevedo, numa casa de dois andares, sendo que no térreo funcionava um armazém, sustento de toda a família. Nos meses de abril e maio de 1941 choveu muito além do habitual. As chuvas aconteceram nas bacias dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí, que deságuam no Guaíba. Um forte vento vindo do sul, da lagoa dos Patos, ajudou a represar o rio. As águas começaram a subir e a cobrir as áreas mais baixas da cidade. A grande várzea do Quarto Distrito foi uma das primeiras a ser atingida.  As famílias foram avisadas de que a cheia seria muito grande e que teriam que se preparar para uma calamidade. Meu avô levou para o andar superior boa parte das mercadorias do armazém. Alguns sacos, entretanto, foram colocados em cima de uma mesa e de um balcão e foram deixadas no térreo.  Na noite que antecedeu a cheia máxima, ouviram estranhos barulhos vindos do armazém e verificaram que ratos, vindos do esgoto, tentavam sair por um bueiro, cuja tampa era de ferro fundido. Foi despejada grande quantidade de creolina no ralo, colocada uma grossa tábua e, em cima dela, foi colocado um peso de balança que tinha cinco quilos. Na noite do dia seguinte, a água subiu rapidamente, muito mais do que imaginavam. Ultrapassou a altura de uma pessoa. A parte inferior da casa ficou totalmente inundada. Tudo que não foi levado para o andar superior ficou submerso. As mercadorias que boiavam se juntaram num canto do armazém. Era impossível descer a escada da parte alta. Minha avó lembrava que na parte de cima, onde todos estavam meio acampados, não tinha banheiro. Tinham que despejar o conteúdo do urinol pela janela. A luz elétrica já estava interrompida e não havia água nas torneiras. Tanto a usina de energia elétrica, que ficava na ponta do Gasômetro, como a hidráulica, situada no cais, ficaram submersas. Quando amanheceu, as pessoas podiam ver até onde chegava a margem do rio. Minha vó contou que viu dois porcos boiando. Os animais morreram afogados por não conseguirem sair do chiqueiro. As galinhas, por sua vez, escaparam e subiram para os telhados e algumas árvores. Todos os moradores foram aconselhados a abandonar suas casas e procurar abrigo em áreas mais altas da cidade. Foram avisados de que, se alguém fosse surpreendido saqueando alguma casa, seria imediatamente morto pela polícia ou pela Brigada. Contavam que não foi registrado nenhum caso de […]

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As famílias de meus antepassados moravam no Quarto Distrito de Porto Alegre, onde hoje estão os bairros de São Geraldo, São João e Navegantes. Menos de dois anos depois de se casarem, meus pais abandonaram as vizinhanças do Quarto Distrito e construíram uma casa no bairro Petrópolis, cerca de quatro quadras além do fim da linha do bonde. Meu avô materno achava um mau negócio morar tão longe do centro. O ideal, segundo ele, seria morar nas ruas São Paulo, Pará ou Bahia, recém-urbanizadas e perto dos recursos necessários para a vida. Meus avós moravam na rua Moura Azevedo, numa casa de dois andares, sendo que no térreo funcionava um armazém, sustento de toda a família. Nos meses de abril e maio de 1941 choveu muito além do habitual. As chuvas aconteceram nas bacias dos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí, que deságuam no Guaíba. Um forte vento vindo do sul, da lagoa dos Patos, ajudou a represar o rio. As águas começaram a subir e a cobrir as áreas mais baixas da cidade. A grande várzea do Quarto Distrito foi uma das primeiras a ser atingida.  As famílias foram avisadas de que a cheia seria muito grande e que teriam que se preparar para uma calamidade. Meu avô levou para o andar superior boa parte das mercadorias do armazém. Alguns sacos, entretanto, foram colocados em cima de uma mesa e de um balcão e foram deixadas no térreo.  Na noite que antecedeu a cheia máxima, ouviram estranhos barulhos vindos do armazém e verificaram que ratos, vindos do esgoto, tentavam sair por um bueiro, cuja tampa era de ferro fundido. Foi despejada grande quantidade de creolina no ralo, colocada uma grossa tábua e, em cima dela, foi colocado um peso de balança que tinha cinco quilos. Na noite do dia seguinte, a água subiu rapidamente, muito mais do que imaginavam. Ultrapassou a altura de uma pessoa. A parte inferior da casa ficou totalmente inundada. Tudo que não foi levado para o andar superior ficou submerso. As mercadorias que boiavam se juntaram num canto do armazém. Era impossível descer a escada da parte alta. Minha avó lembrava que na parte de cima, onde todos estavam meio acampados, não tinha banheiro. Tinham que despejar o conteúdo do urinol pela janela. A luz elétrica já estava interrompida e não havia água nas torneiras. Tanto a usina de energia elétrica, que ficava na ponta do Gasômetro, como a hidráulica, situada no cais, ficaram submersas. Quando amanheceu, as pessoas podiam ver até onde chegava a margem do rio. Minha vó contou que viu dois porcos boiando. Os animais morreram afogados por não conseguirem sair do chiqueiro. As galinhas, por sua vez, escaparam e subiram para os telhados e algumas árvores. Todos os moradores foram aconselhados a abandonar suas casas e procurar abrigo em áreas mais altas da cidade. Foram avisados de que, se alguém fosse surpreendido saqueando alguma casa, seria imediatamente morto pela polícia ou pela Brigada. Contavam que não foi registrado nenhum caso de […]

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