Parêntese | Resenha

Jandiro Adriano Koch: Um animal de Deus: a escrita visceral de Walmir Ayala

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Jandiro Adriano Koch: Um animal de Deus: a escrita visceral de Walmir Ayala Poucas páginas de Um animal de Deus levam à conclusão de que o personagem Mário é o duplo do escritor porto-alegrense Walmir Ayala (1933-1991). “Muito cedo vira a morte em sua casa, a violência, o sangue, a morte. Tinha quatro anos de idade. Muito cedo” (p.14). É a rememoração do assassinato da mãe de Ayala, morta pelo marido. A motivação teria sido o adultério. A história dos pais foi, em parte, recriada em À beira do corpo (Letras e Artes/1964). O estilo carrega no autobiográfico. Eu gosto. Nas missivas que escreveu – que merecem uma compilação -, não raras vezes explicou as fontes de inspiração. Sobre As ostras estão morrendo (Editora Leitura/2007), que ganhou edição póstuma, confessou ao escritor gaúcho Paulo Hecker Filho (1926-2005), em 17 de janeiro de 1984: “Escrevi com prazer esta história, misturando aos personagens muitas pessoas que conheci, e com as quais privei. O ponto de partida foi um crime passional ocorrido em Curitiba, há mais ou menos cinco anos” (Carta a Paulo Hecker Filho/Acervo da PUC). Em entrevistas, a autonarrativa ficcionalizada também foi evocada como método. Conforme o fascículo 22 da coleção Autores gaúchos, lançado pelo Instituto Estadual do Livro, Ayala disse para Zênia Dirani: “Tenho uma compulsão diária de transformar em experiência literária todos os acontecimentos existenciais” (p. 4). Foi um falar de si repleto de homoerotismo – ao menos durante os anos 1960.  Quem conhece um pouco dos escritores com quem Ayala convivia, logo reconhece, em Um animal de Deus, que a personagem Ana é Maria Helena Cardoso (1903-1977), irmã de Lúcio Cardoso (1912-1968), na casa de quem o gaúcho morou algum tempo. Para sedimentar de vez a hipótese de escrita de si, André Seffrin, crítico literário e detentor dos direitos autorais, me escreveu, em 28 de dezembro de 2015, nestes termos: “Um animal de Deus e quase todo o volume 3 (A fuga do arcanjo) dos diários de Walmir foram escritos, salvo engano, sobre/para uma única pessoa, uma das grandes paixões de Walmir, mas uma pessoa que nenhuma ligação tinha com literatura. Walmir chegou a comentar comigo que, ao encontrar ao acaso essa pessoa na rua, já nos anos 70, nem a reconheceu. Chegou a rir do fato de um amor que lhe rendeu dois livros e uma década depois não lhe dizia mais nada.”  Lúcio Cardoso, também homossexual, viveu conflitos que o levaram à vacilante posição entre a convicção católica e o corpo homodesejante. O gaúcho Francisco Bittencourt (1933-1997), amigo de Ayala por um bom tempo, também trilhou os mesmos caminhos. Pedregosa via, característica das produções literárias e vidas de um conjunto de artistas de um passado não distante. A homossexualidade os atormentava e deliciava. Por isso as obras se inscrevem como tensão entre extremos. Em Um animal de Deus, a religiosidade foi analisada em retrospecto biográfico, mostrando um menino sem mãe, solitário, assustado, encontrando refúgio nas orações e no canto no coral da igreja. A infância e adolescência foram em Porto Alegre, onde teve que lidar com alguns estranhamentos pela orientação sexual facilmente identificada.  Em 1956, Ayala fugiu do Rio Grande […]

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Poucas páginas de Um animal de Deus levam à conclusão de que o personagem Mário é o duplo do escritor porto-alegrense Walmir Ayala (1933-1991). “Muito cedo vira a morte em sua casa, a violência, o sangue, a morte. Tinha quatro anos de idade. Muito cedo” (p.14). É a rememoração do assassinato da mãe de Ayala, morta pelo marido. A motivação teria sido o adultério. A história dos pais foi, em parte, recriada em À beira do corpo (Letras e Artes/1964). O estilo carrega no autobiográfico. Eu gosto. Nas missivas que escreveu – que merecem uma compilação -, não raras vezes explicou as fontes de inspiração. Sobre As ostras estão morrendo (Editora Leitura/2007), que ganhou edição póstuma, confessou ao escritor gaúcho Paulo Hecker Filho (1926-2005), em 17 de janeiro de 1984: “Escrevi com prazer esta história, misturando aos personagens muitas pessoas que conheci, e com as quais privei. O ponto de partida foi um crime passional ocorrido em Curitiba, há mais ou menos cinco anos” (Carta a Paulo Hecker Filho/Acervo da PUC). Em entrevistas, a autonarrativa ficcionalizada também foi evocada como método. Conforme o fascículo 22 da coleção Autores gaúchos, lançado pelo Instituto Estadual do Livro, Ayala disse para Zênia Dirani: “Tenho uma compulsão diária de transformar em experiência literária todos os acontecimentos existenciais” (p. 4). Foi um falar de si repleto de homoerotismo – ao menos durante os anos 1960.  Quem conhece um pouco dos escritores com quem Ayala convivia, logo reconhece, em Um animal de Deus, que a personagem Ana é Maria Helena Cardoso (1903-1977), irmã de Lúcio Cardoso (1912-1968), na casa de quem o gaúcho morou algum tempo. Para sedimentar de vez a hipótese de escrita de si, André Seffrin, crítico literário e detentor dos direitos autorais, me escreveu, em 28 de dezembro de 2015, nestes termos: “Um animal de Deus e quase todo o volume 3 (A fuga do arcanjo) dos diários de Walmir foram escritos, salvo engano, sobre/para uma única pessoa, uma das grandes paixões de Walmir, mas uma pessoa que nenhuma ligação tinha com literatura. Walmir chegou a comentar comigo que, ao encontrar ao acaso essa pessoa na rua, já nos anos 70, nem a reconheceu. Chegou a rir do fato de um amor que lhe rendeu dois livros e uma década depois não lhe dizia mais nada.”  Lúcio Cardoso, também homossexual, viveu conflitos que o levaram à vacilante posição entre a convicção católica e o corpo homodesejante. O gaúcho Francisco Bittencourt (1933-1997), amigo de Ayala por um bom tempo, também trilhou os mesmos caminhos. Pedregosa via, característica das produções literárias e vidas de um conjunto de artistas de um passado não distante. A homossexualidade os atormentava e deliciava. Por isso as obras se inscrevem como tensão entre extremos. Em Um animal de Deus, a religiosidade foi analisada em retrospecto biográfico, mostrando um menino sem mãe, solitário, assustado, encontrando refúgio nas orações e no canto no coral da igreja. A infância e adolescência foram em Porto Alegre, onde teve que lidar com alguns estranhamentos pela orientação sexual facilmente identificada.  Em 1956, Ayala fugiu do Rio Grande […]

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