Parêntese | Resenha

Jandiro Koch: Moll Flanders para escapar ou para mergulhar no pandemônio

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Jandiro Koch: Moll Flanders para escapar ou para mergulhar no pandemônio O escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731), o mesmo de Robinson Crusoé (1719), que todo mundo, menos eu, parece ter lido, abriu Moll Flanders (1722), que tem um título compridíssimo inaceitável para os editores de hoje (The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders Who Was Born In Newgate, and During a Life of Continu’d Variety For Threescore Years, Besides Her Childhood, Was Twelve Year a Whore, Five Times a Wife [Whereof Once To Her Own Brother], Twelve Year a Thief, Eight Year a Transported Felon In Virginia, At Last Grew Rich, Liv’d Honest, and Died a Penitent. Written from her own Memorandums), com uma série de advertências. Informou que todas as cruezas só foram relatadas porque, sem essa explanação, o leitor não compreenderia a extensão do arrependimento da personagem principal.  O único propósito da transparência teria sido reforçar condutas opostas à levada por ela.  Como manual de instrução, teria observado o requisito de “não incluir, em nenhuma parte, alguma ação perversa que não dê origens a consequências infelizes”. O que me fez pensar nas edições de Tesouro de exemplos, não exatamente o que planejava ler depois de Naná (1880), de Emile Zola (1840-1902). Para quem não sabe, o padre Francisco Alves fez sucesso com um livro assim denominado, um “tesouro”, lá pela década de 1950, volume composto de pequenas histórias para encantar sacerdotes, catequistas, professoras e donas de casa. Mais sincrético, Maktub, de Paulo Coelho, cabe nesse quase gênero, reunião de conselhos, pensamentos e tudo mais. Sabedoria fast. Leitura fast. Diga-se que a placa de “cuide-se” foi recurso corriqueiro em tomos com potencial de escândalo. Algumas vezes para contê-lo, outras vezes para acioná-lo – porque, no mundo literário, a sensação e o sucesso são eternos enamorados. A tal moral da história tornou a Moll Flanders do início da narrativa em uma jovem se sentindo culpada pelos abusos que sofreu, atribuindo-os à excessiva vaidade decorrente de sua beleza: “Se eu tivesse agido como convinha, e resistido como a virtude e a honra exigem, ou aquele cavalheiro teria renunciado aos seus assédios […], ou então ele teria feito honradas e dignas propostas de casamento.” Esse tipo de autoflagelo, no entanto, foi rareando para avivar a história – com êxito. Somente no derradeiro voltou-se à ênfase na penitência. O contexto é a Inglaterra do século XVIII, tempos em que os homens, mesmo os jovens, separavam “sua melhor peruca, seu chapéu e sua espada” antes de sair de casa. As melenas fake não raramente eram objeto de roubo. Custavam caro. Defoe gostava do adorno e aparece com um exemplar encaracolado nas imagens disponíveis pela internet. De dar inveja nas drag queens. A despeito dos adornos masculinos, as observações sobre a sociedade da época me fizeram duvidar estar em tempo tão longínquo: “Como para ter segurança os homens renunciam tão naturalmente à honra e à justiça, à humanidade e até à religião!”. E não é? Refletir sobre ganância foi inescapável em vários momentos. Duas coisas mais indicam contemporaneidade: a linguagem supreendentemente fluida e alguns […]

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O escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731), o mesmo de Robinson Crusoé (1719), que todo mundo, menos eu, parece ter lido, abriu Moll Flanders (1722), que tem um título compridíssimo inaceitável para os editores de hoje (The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders Who Was Born In Newgate, and During a Life of Continu’d Variety For Threescore Years, Besides Her Childhood, Was Twelve Year a Whore, Five Times a Wife [Whereof Once To Her Own Brother], Twelve Year a Thief, Eight Year a Transported Felon In Virginia, At Last Grew Rich, Liv’d Honest, and Died a Penitent. Written from her own Memorandums), com uma série de advertências. Informou que todas as cruezas só foram relatadas porque, sem essa explanação, o leitor não compreenderia a extensão do arrependimento da personagem principal.  O único propósito da transparência teria sido reforçar condutas opostas à levada por ela.  Como manual de instrução, teria observado o requisito de “não incluir, em nenhuma parte, alguma ação perversa que não dê origens a consequências infelizes”. O que me fez pensar nas edições de Tesouro de exemplos, não exatamente o que planejava ler depois de Naná (1880), de Emile Zola (1840-1902). Para quem não sabe, o padre Francisco Alves fez sucesso com um livro assim denominado, um “tesouro”, lá pela década de 1950, volume composto de pequenas histórias para encantar sacerdotes, catequistas, professoras e donas de casa. Mais sincrético, Maktub, de Paulo Coelho, cabe nesse quase gênero, reunião de conselhos, pensamentos e tudo mais. Sabedoria fast. Leitura fast. Diga-se que a placa de “cuide-se” foi recurso corriqueiro em tomos com potencial de escândalo. Algumas vezes para contê-lo, outras vezes para acioná-lo – porque, no mundo literário, a sensação e o sucesso são eternos enamorados. A tal moral da história tornou a Moll Flanders do início da narrativa em uma jovem se sentindo culpada pelos abusos que sofreu, atribuindo-os à excessiva vaidade decorrente de sua beleza: “Se eu tivesse agido como convinha, e resistido como a virtude e a honra exigem, ou aquele cavalheiro teria renunciado aos seus assédios […], ou então ele teria feito honradas e dignas propostas de casamento.” Esse tipo de autoflagelo, no entanto, foi rareando para avivar a história – com êxito. Somente no derradeiro voltou-se à ênfase na penitência. O contexto é a Inglaterra do século XVIII, tempos em que os homens, mesmo os jovens, separavam “sua melhor peruca, seu chapéu e sua espada” antes de sair de casa. As melenas fake não raramente eram objeto de roubo. Custavam caro. Defoe gostava do adorno e aparece com um exemplar encaracolado nas imagens disponíveis pela internet. De dar inveja nas drag queens. A despeito dos adornos masculinos, as observações sobre a sociedade da época me fizeram duvidar estar em tempo tão longínquo: “Como para ter segurança os homens renunciam tão naturalmente à honra e à justiça, à humanidade e até à religião!”. E não é? Refletir sobre ganância foi inescapável em vários momentos. Duas coisas mais indicam contemporaneidade: a linguagem supreendentemente fluida e alguns […]

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