Parêntese | Resenha

Jandiro Koch : Os contos de Voltaire e os meios-textos da internet

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Jandiro Koch : Os contos de Voltaire e os meios-textos da internet Definitivamente estou na vibe de ler os velhos. Dizem que na pandemia de Covid-19 eles pouco interessam. Será que valem a pena? Já trouxe dois para a (Parêntese): Daniel Defoe e Emile Zola. Minha mais nova investida foi uma coletânea de um filósofo francês: Os contos de Voltaire (Nova Cultural/2002). Daqueles livros de capa dura que as estantes costumam ostentar  — bom escape das sandices na internet. Antes de dizer sobre a compilação, preciso voltar à adolescência, quando esse mesmo escritor esteve presente de forma contundente na minha vida. Interior de Estrela, numa colônia de agricultores alemães, eu pouco compreendia sobre sexualidade, embora soubesse 100% que não tinha as vontades semelhantes aos demais: namorar uma menina, casar na Igreja e ter filhos.  Talvez porque minha família fosse católica, talvez porque a Bíblia tenha sido uma das minhas primeiras leituras, não recordo exatamente por qual razão eu tinha noção de que a história de Sodoma e Gomorra tinha a ver com um suposto castigo de Deus para os homossexuais. Hoje sei que a vinculação da cidade maldita com a sodomia é oriunda de interpretações enviesadas de exegetas religiosos. Novidade? Que o problema todo era a falta de hospitalidade do povo para com os anjos  — o que não me deixa em boa situação, porque se me safo por ser gay, viro estátua de sal por ser antissocial. O que interessa é que, naqueles idos, eu vinculava Sodoma com os gays. E que eu entendia pouquíssimo sobre o que sentia. Fui aprendendo com os livros e com a televisão. Nas estantes das escolas e na biblioteca pública da cidade grande, buscava escritos sobre o assunto. Localizei muita coisa, a maioria tratando da questão em termos de doença e desvio. E achei Voltaire (1694-1778) numa edição de Os Pensadores, da Abril Cultural, do ano de 1973, que contém parte do Dicionário filosófico, publicado pela primeira vez em 1764. No verbete Gênesis, usei uma canetinha laranja, não tinha essas de grifar, para destacar “Ele criou-os macho e fêmea”. Ferrou! Sobre essa transcrição, o autor inferiu: “Se Deus ou os deuses secundários criaram o macho e a fêmea à sua semelhança, parece, nesse caso, que os judeus consideravam Deus e os deuses como machos e fêmeas.” Opa! Em outra parte, subintitulada “E, pela tarde, os dois anjos chegaram a Sodoma, etc.”, afirmou: “Toda a história dos dois anjos que os sodomitas querem violar é talvez a mais extraordinária que a antiguidade inventou […].” Se existe algum sentido na frase piegas “esse livro salvou minha vida”, posso conceder a esses trechos essa deferência. Nunca mais me atordoei intimamente com o discurso homofóbico dos piedosos. Firmei a convicção de que não interpretavam o texto sagrado corretamente, passei este para o campo da ficção, e ignorei as Inquisições. Tive um outro rápido contato com Voltaire, com o conto Cândido ou O Otimismo, na universidade, quando uma colega ficou incumbida de apresentar a obra  — vários desses contos, em separado, foram publicados como livros  — em uma aula de […]

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Definitivamente estou na vibe de ler os velhos. Dizem que na pandemia de Covid-19 eles pouco interessam. Será que valem a pena? Já trouxe dois para a (Parêntese): Daniel Defoe e Emile Zola. Minha mais nova investida foi uma coletânea de um filósofo francês: Os contos de Voltaire (Nova Cultural/2002). Daqueles livros de capa dura que as estantes costumam ostentar  — bom escape das sandices na internet. Antes de dizer sobre a compilação, preciso voltar à adolescência, quando esse mesmo escritor esteve presente de forma contundente na minha vida. Interior de Estrela, numa colônia de agricultores alemães, eu pouco compreendia sobre sexualidade, embora soubesse 100% que não tinha as vontades semelhantes aos demais: namorar uma menina, casar na Igreja e ter filhos.  Talvez porque minha família fosse católica, talvez porque a Bíblia tenha sido uma das minhas primeiras leituras, não recordo exatamente por qual razão eu tinha noção de que a história de Sodoma e Gomorra tinha a ver com um suposto castigo de Deus para os homossexuais. Hoje sei que a vinculação da cidade maldita com a sodomia é oriunda de interpretações enviesadas de exegetas religiosos. Novidade? Que o problema todo era a falta de hospitalidade do povo para com os anjos  — o que não me deixa em boa situação, porque se me safo por ser gay, viro estátua de sal por ser antissocial. O que interessa é que, naqueles idos, eu vinculava Sodoma com os gays. E que eu entendia pouquíssimo sobre o que sentia. Fui aprendendo com os livros e com a televisão. Nas estantes das escolas e na biblioteca pública da cidade grande, buscava escritos sobre o assunto. Localizei muita coisa, a maioria tratando da questão em termos de doença e desvio. E achei Voltaire (1694-1778) numa edição de Os Pensadores, da Abril Cultural, do ano de 1973, que contém parte do Dicionário filosófico, publicado pela primeira vez em 1764. No verbete Gênesis, usei uma canetinha laranja, não tinha essas de grifar, para destacar “Ele criou-os macho e fêmea”. Ferrou! Sobre essa transcrição, o autor inferiu: “Se Deus ou os deuses secundários criaram o macho e a fêmea à sua semelhança, parece, nesse caso, que os judeus consideravam Deus e os deuses como machos e fêmeas.” Opa! Em outra parte, subintitulada “E, pela tarde, os dois anjos chegaram a Sodoma, etc.”, afirmou: “Toda a história dos dois anjos que os sodomitas querem violar é talvez a mais extraordinária que a antiguidade inventou […].” Se existe algum sentido na frase piegas “esse livro salvou minha vida”, posso conceder a esses trechos essa deferência. Nunca mais me atordoei intimamente com o discurso homofóbico dos piedosos. Firmei a convicção de que não interpretavam o texto sagrado corretamente, passei este para o campo da ficção, e ignorei as Inquisições. Tive um outro rápido contato com Voltaire, com o conto Cândido ou O Otimismo, na universidade, quando uma colega ficou incumbida de apresentar a obra  — vários desses contos, em separado, foram publicados como livros  — em uma aula de […]

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