Ensaio | Parêntese

Jandiro Koch: Qorpo Santo num palimpsesto

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Jandiro Koch: Qorpo Santo num palimpsesto Terça-feira. Dezesseis de junho de dois mil e vinte. Há dias eu acompanhava a previsão do tempo. Em meio às nuvens e aos anúncios de chuva, torcendo por céu azul. Abasteci o Corsa 1995 no dia anterior. Segui movido por uma expectativa adolescente – e medo adulto da correia do não sei o quê, que o mecânico, de ouvir, disse que estava phodida.   Triunfo não saiu da minha cabeça desde a leitura de um trecho da Ensiqlopédia: ou seis mezes de huma enfermidade, colossal volume de escritos assinado pelo gaúcho Qorpo Santo (1829-1883): “Fui por curiozidade tomar hum banho à beira do Jacuhy – na banheira natural de pedra em que meu Pai costumava tomar há 28 anos.”  Estacionei ao lado da Capela do Divino Espírito Santo, erguida talvez em meados do século XVIII, em estilo açoriano. Construção ladeada por uma residência em ruínas, que há pouco se via em pé. A impressão foi de que o patrimônio tem os dias contados – salvo exceções. Mas era impossível apontar o dedo para a cidadela, com vários prédios conservados, saído de município em que não restou nada (mas isso é outra história). Qorpo Santo nasceu na então freguesia de Triunfo. Também Bento Gonçalves da Silva (1788-1847). As casas são locais de visitação.  Movimento quase inexistente na rua Demétrio Ribeiro, de poucas quadras. Todas as pessoas de máscara. A casa de Qorpo Santo fica à esquina. A lateral segue uma ruela que termina em degraus para a beira-rio. Tanto essa via quanto a escadaria foram renomeadas com seu nome – na verdade, com a alcunha. De batismo, José Joaquim de Campos Leão. Incorporou Qorpo Santo, segundo ele explicou, quando passou a viver em abstenção de sexo (em corpo, porque a mente era povoada de mulheres). A espécie de epíteto foi respeitada nos documentos oficiais (cartas de liberdade, petições, atestados…) e incorporada à assinatura.Fiz e refiz a inevitável espiada pela fresta das madeiras, tapumes às antigas janelas. Não há piso. A separação de cômodos resta à imaginação pela demarcação de tijolos remanescentes. Abandonado de guarda (Era uma casa muito engraçada…), o espaço é iluminado pelo sol e irrigado pela chuva. Uma paineira relativamente grande está na cozinha, ou no quarto, ou na sala. É lindo, mas derrubará – talvez seja a vontade. Vista lateral da casa de Qorpo Santo. (Foto do autor) Mestre-escola, vereador, subdelegado de polícia, empregado e dono de casa comercial, os cargos que ocupou supõem alguém dentro dos parâmetros, ao menos até comportamentos não cartesianos, reiterados, levarem a esposa, Inácia de Campos Leão, um bocado mais jovem, a mover um processo de interdição. Vários profissionais da Saúde atestaram. Insano de atar? Não. Mas divergiram sobre a independência para os atos da vida. Acabou com um curador. Proprietário de inúmeras casas em Porto Alegre, a maioria na rua do Ouvidor – depois rua da Ladeira, hoje rua General Câmara -, talvez tenha sido objetificado na disputa pelos bens.  Horas escrevendo. Exacerbação mental. Com todas as hermenêuticas disponíveis, dificílimo interpretar a produção, […]

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Terça-feira. Dezesseis de junho de dois mil e vinte. Há dias eu acompanhava a previsão do tempo. Em meio às nuvens e aos anúncios de chuva, torcendo por céu azul. Abasteci o Corsa 1995 no dia anterior. Segui movido por uma expectativa adolescente – e medo adulto da correia do não sei o quê, que o mecânico, de ouvir, disse que estava phodida.   Triunfo não saiu da minha cabeça desde a leitura de um trecho da Ensiqlopédia: ou seis mezes de huma enfermidade, colossal volume de escritos assinado pelo gaúcho Qorpo Santo (1829-1883): “Fui por curiozidade tomar hum banho à beira do Jacuhy – na banheira natural de pedra em que meu Pai costumava tomar há 28 anos.”  Estacionei ao lado da Capela do Divino Espírito Santo, erguida talvez em meados do século XVIII, em estilo açoriano. Construção ladeada por uma residência em ruínas, que há pouco se via em pé. A impressão foi de que o patrimônio tem os dias contados – salvo exceções. Mas era impossível apontar o dedo para a cidadela, com vários prédios conservados, saído de município em que não restou nada (mas isso é outra história). Qorpo Santo nasceu na então freguesia de Triunfo. Também Bento Gonçalves da Silva (1788-1847). As casas são locais de visitação.  Movimento quase inexistente na rua Demétrio Ribeiro, de poucas quadras. Todas as pessoas de máscara. A casa de Qorpo Santo fica à esquina. A lateral segue uma ruela que termina em degraus para a beira-rio. Tanto essa via quanto a escadaria foram renomeadas com seu nome – na verdade, com a alcunha. De batismo, José Joaquim de Campos Leão. Incorporou Qorpo Santo, segundo ele explicou, quando passou a viver em abstenção de sexo (em corpo, porque a mente era povoada de mulheres). A espécie de epíteto foi respeitada nos documentos oficiais (cartas de liberdade, petições, atestados…) e incorporada à assinatura.Fiz e refiz a inevitável espiada pela fresta das madeiras, tapumes às antigas janelas. Não há piso. A separação de cômodos resta à imaginação pela demarcação de tijolos remanescentes. Abandonado de guarda (Era uma casa muito engraçada…), o espaço é iluminado pelo sol e irrigado pela chuva. Uma paineira relativamente grande está na cozinha, ou no quarto, ou na sala. É lindo, mas derrubará – talvez seja a vontade. Vista lateral da casa de Qorpo Santo. (Foto do autor) Mestre-escola, vereador, subdelegado de polícia, empregado e dono de casa comercial, os cargos que ocupou supõem alguém dentro dos parâmetros, ao menos até comportamentos não cartesianos, reiterados, levarem a esposa, Inácia de Campos Leão, um bocado mais jovem, a mover um processo de interdição. Vários profissionais da Saúde atestaram. Insano de atar? Não. Mas divergiram sobre a independência para os atos da vida. Acabou com um curador. Proprietário de inúmeras casas em Porto Alegre, a maioria na rua do Ouvidor – depois rua da Ladeira, hoje rua General Câmara -, talvez tenha sido objetificado na disputa pelos bens.  Horas escrevendo. Exacerbação mental. Com todas as hermenêuticas disponíveis, dificílimo interpretar a produção, […]

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