Crônica | Parêntese

José Falero: a faxineira

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José Falero: a faxineira Sou um negro de pele clara, e teria o maior prazer em explicar por que me defino assim, não fosse o fato de que, na verdade, me cansei de explicar isso e já não tenho mais prazer nenhum em fazê-lo. O que importa é que acredito possuir alguma consciência racial, ainda que desenvolvida tardiamente: foi só depois dos 30 anos que comecei a me livrar um pouco do senso comum e pude refletir sobre minha própria essência de maneira mais escura. Isso mesmo: de maneira mais escura. E, desde então, procuro me manter nesse movimento constante de conhecer e reconhecer cada vez mais minha negritude. Tomar consciência de si próprio como negro é um acontecimento ruidoso, porque faz uma porção de fichas acumuladas caírem de uma hora para a outra. Compreende-se, por fim, toda uma série de eventos da vida pregressa para os quais não tinha sido possível encontrar explicação razoável. Assim, mesmo um negro que até ontem não se considerava negro e, portanto, teria negado a ocorrência de qualquer manifestação racista contra sua pessoa, hoje, já consciente de sua negritude, é perfeitamente capaz de citar inúmeros casos. Eu, por exemplo, poderia narrar aqui qualquer uma das diversas abordagens policiais abusivas que sofri; abordagens, essas, que só fizeram sentido para mim depois, quando, além de me reconhecer como negro, tomei consciência do racismo como elemento integrante da estrutura social que nos cerca. Quanto a isso, Sueli Carneiro foi precisa em “Negros de pele clara”, uma matéria originalmente veiculada no Portal Geledés: “Sendo esses jovens, em sua maioria, negros de pele clara como um dos seus principais ídolos e líderes, Mano Brown […], o que esses jovens sabem pela experiência cotidiana é que o policial nunca se engana, sejam eles mais claros ou escuros”. Eu também poderia contar aqui sobre como os colegas me chamavam, na época em que trabalhei num certo supermercado: macaco branco, babuíno mal-passado. Ou então poderia falar sobre como o pessoal da Bela Vista, onde trabalhei como porteiro, corria a guardar o celular tão logo botava os olhos em mim. Mas não vou escrever nada nesse sentido. Prefiro contar uma outra história, na qual eu mesmo fui o racista, apesar de toda a magnífica, gloriosa e extraordinária consciência acerca da problemática racial que, àquela altura, eu já acreditava possuir. E conto esta história não só pelo peso que a confissão de uma falta confere à retórica, não só pela estratégia batida de primeiro depor contra um ato próprio para nisso embasar o depoimento contra atos de terceiros; conto esta história, também, e sobretudo, para destacar a importância do autopoliciamento na luta antirracista. Vamos lá. Aconteceu, uma noite, que encontrei uma senhora esperando seu ônibus no mesmo ponto onde eu costumava esperar o meu depois da aula. Perto dali havia um condomínio inaugurado não muito tempo antes, e essa senhora ganhava a vida faxinando um dos tantos apartamentos daquele prédio. A princípio, tendo em vista que aquele setor escuro e deserto da cidade não poderia inspirar em quem […]

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Sou um negro de pele clara, e teria o maior prazer em explicar por que me defino assim, não fosse o fato de que, na verdade, me cansei de explicar isso e já não tenho mais prazer nenhum em fazê-lo. O que importa é que acredito possuir alguma consciência racial, ainda que desenvolvida tardiamente: foi só depois dos 30 anos que comecei a me livrar um pouco do senso comum e pude refletir sobre minha própria essência de maneira mais escura. Isso mesmo: de maneira mais escura. E, desde então, procuro me manter nesse movimento constante de conhecer e reconhecer cada vez mais minha negritude. Tomar consciência de si próprio como negro é um acontecimento ruidoso, porque faz uma porção de fichas acumuladas caírem de uma hora para a outra. Compreende-se, por fim, toda uma série de eventos da vida pregressa para os quais não tinha sido possível encontrar explicação razoável. Assim, mesmo um negro que até ontem não se considerava negro e, portanto, teria negado a ocorrência de qualquer manifestação racista contra sua pessoa, hoje, já consciente de sua negritude, é perfeitamente capaz de citar inúmeros casos. Eu, por exemplo, poderia narrar aqui qualquer uma das diversas abordagens policiais abusivas que sofri; abordagens, essas, que só fizeram sentido para mim depois, quando, além de me reconhecer como negro, tomei consciência do racismo como elemento integrante da estrutura social que nos cerca. Quanto a isso, Sueli Carneiro foi precisa em “Negros de pele clara”, uma matéria originalmente veiculada no Portal Geledés: “Sendo esses jovens, em sua maioria, negros de pele clara como um dos seus principais ídolos e líderes, Mano Brown […], o que esses jovens sabem pela experiência cotidiana é que o policial nunca se engana, sejam eles mais claros ou escuros”. Eu também poderia contar aqui sobre como os colegas me chamavam, na época em que trabalhei num certo supermercado: macaco branco, babuíno mal-passado. Ou então poderia falar sobre como o pessoal da Bela Vista, onde trabalhei como porteiro, corria a guardar o celular tão logo botava os olhos em mim. Mas não vou escrever nada nesse sentido. Prefiro contar uma outra história, na qual eu mesmo fui o racista, apesar de toda a magnífica, gloriosa e extraordinária consciência acerca da problemática racial que, àquela altura, eu já acreditava possuir. E conto esta história não só pelo peso que a confissão de uma falta confere à retórica, não só pela estratégia batida de primeiro depor contra um ato próprio para nisso embasar o depoimento contra atos de terceiros; conto esta história, também, e sobretudo, para destacar a importância do autopoliciamento na luta antirracista. Vamos lá. Aconteceu, uma noite, que encontrei uma senhora esperando seu ônibus no mesmo ponto onde eu costumava esperar o meu depois da aula. Perto dali havia um condomínio inaugurado não muito tempo antes, e essa senhora ganhava a vida faxinando um dos tantos apartamentos daquele prédio. A princípio, tendo em vista que aquele setor escuro e deserto da cidade não poderia inspirar em quem […]

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