Crônica | Parêntese

José Falero: Alegria

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José Falero: Alegria Pouca gente sabe, mas entre todos os tipos de trabalho que já tive, um deles foi o de palhaço, ou clown, como alguns preferem dizer. De nariz vermelho e tudo, eu tocava violão no espetáculo “João Jiló”, do grupo TIA de teatro. Apresentávamos principalmente para crianças das escolas de Canoas. Aquele período da minha vida me rendeu o apelido de Krusty, porque o Marcelo e a Mariana, do TIA, me achavam parecido com o célebre palhaço fumante e beberrão dos Simpsons. E, pensando bem, talvez tenha sido por isso — por acreditar que eu precisava de uma fonte de alegria mais saudável do que o tabaco e o álcool — que eles compartilharam comigo as canções de um cara que eu não conhecia, mas que eles imaginavam que eu iria gostar bastante. Copiei as músicas num pendrive, se não me engano, e prometi escutar assim que estivesse de volta em casa, depois da nossa pequena temporada de apresentações do “João Jiló” em Canoas, durante a qual fiquei no apartamento deles, para economizar passagens de ônibus e de trem. E aconteceu que, finda a temporada, no retorno a Porto Alegre, vinha eu caminhando pela BR até a estação de trem mais próxima, com as canções a serem experimentadas no bolso, quando, de repente, me percebi com grande fome. Na mesma hora, os meus olhos ficaram atentos às fachadas, procurando qualquer tipo de anúncio de comida, e, não demorou muito, achei uma lanchonete, logo adiante. Ao chegar mais perto, verifiquei que estava fechada, mas, para a minha sorte — ou para o meu azar, nunca se sabe —, um cara resolveu sair dali no exato instante em que eu passava. Aí, num impulso, movido pela fome, me fiz de louco e aproveitei a entrada momentaneamente aberta para invadir o lugar, passando espremido por entre o cara e o umbral, rápido que nem flecha. Agora que eu já tinha entrado, era mais fácil me venderem logo alguma coisa do que ficarem me explicando que a lanchonete ainda não estava aberta — foi o que pensei, otimista. Só que o cara plantado lá atrás do balcão me lançou um olhar estranho. Um olhar que não consegui decifrar muito bem, cheio de algum tipo de surpresa. Não a simples surpresa de quem vê alguém adentrar o seu estabelecimento antes da hora; outro tipo de surpresa, mais bicuda, mais ofendida. — Tem pastel, mano?Ele só fez que não com a cabeça.— E bolinho de batata, tem?Ele só fez que não com a cabeça.— Enroladinho de salsicha, então?Ele só fez que não com a cabeça.Fui obrigado a rir.— Pô, e o que que tem, então?Pela primeira vez, ele se dignou a falar.— Tem nada pra ti aqui, magrão. Teimoso, na esperança de provar que o sujeito estava enganado, olhei ao redor, procurando qualquer coisa de comer. Um salgadinho desses com gosto de isopor, uma bolacha recheada dessas que dão dor de barriga, umas balas de hortelã dessas que cortam todo o céu da boca, qualquer coisa. Não […]

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Pouca gente sabe, mas entre todos os tipos de trabalho que já tive, um deles foi o de palhaço, ou clown, como alguns preferem dizer. De nariz vermelho e tudo, eu tocava violão no espetáculo “João Jiló”, do grupo TIA de teatro. Apresentávamos principalmente para crianças das escolas de Canoas. Aquele período da minha vida me rendeu o apelido de Krusty, porque o Marcelo e a Mariana, do TIA, me achavam parecido com o célebre palhaço fumante e beberrão dos Simpsons. E, pensando bem, talvez tenha sido por isso — por acreditar que eu precisava de uma fonte de alegria mais saudável do que o tabaco e o álcool — que eles compartilharam comigo as canções de um cara que eu não conhecia, mas que eles imaginavam que eu iria gostar bastante. Copiei as músicas num pendrive, se não me engano, e prometi escutar assim que estivesse de volta em casa, depois da nossa pequena temporada de apresentações do “João Jiló” em Canoas, durante a qual fiquei no apartamento deles, para economizar passagens de ônibus e de trem. E aconteceu que, finda a temporada, no retorno a Porto Alegre, vinha eu caminhando pela BR até a estação de trem mais próxima, com as canções a serem experimentadas no bolso, quando, de repente, me percebi com grande fome. Na mesma hora, os meus olhos ficaram atentos às fachadas, procurando qualquer tipo de anúncio de comida, e, não demorou muito, achei uma lanchonete, logo adiante. Ao chegar mais perto, verifiquei que estava fechada, mas, para a minha sorte — ou para o meu azar, nunca se sabe —, um cara resolveu sair dali no exato instante em que eu passava. Aí, num impulso, movido pela fome, me fiz de louco e aproveitei a entrada momentaneamente aberta para invadir o lugar, passando espremido por entre o cara e o umbral, rápido que nem flecha. Agora que eu já tinha entrado, era mais fácil me venderem logo alguma coisa do que ficarem me explicando que a lanchonete ainda não estava aberta — foi o que pensei, otimista. Só que o cara plantado lá atrás do balcão me lançou um olhar estranho. Um olhar que não consegui decifrar muito bem, cheio de algum tipo de surpresa. Não a simples surpresa de quem vê alguém adentrar o seu estabelecimento antes da hora; outro tipo de surpresa, mais bicuda, mais ofendida. — Tem pastel, mano?Ele só fez que não com a cabeça.— E bolinho de batata, tem?Ele só fez que não com a cabeça.— Enroladinho de salsicha, então?Ele só fez que não com a cabeça.Fui obrigado a rir.— Pô, e o que que tem, então?Pela primeira vez, ele se dignou a falar.— Tem nada pra ti aqui, magrão. Teimoso, na esperança de provar que o sujeito estava enganado, olhei ao redor, procurando qualquer coisa de comer. Um salgadinho desses com gosto de isopor, uma bolacha recheada dessas que dão dor de barriga, umas balas de hortelã dessas que cortam todo o céu da boca, qualquer coisa. Não […]

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