Crônica | Parêntese

José Falero: Fomes

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José Falero: Fomes Tem um episódio do Pica-Pau que o Urso passa o tempo todo tentando ganhar comida dos turistas, num parque florestal. E, sempre que um plano do coitado dá errado, lá vai o filhote, todo resignado, dizer o seguinte: — Deixe estar, papai. Comemos sementes. Eu não sou desses que pensam que rir é o melhor remédio, mas acho que muitas vezes é o único remédio que sobra. Decidi adotar o bordão. E é com ele que, às vezes, quando o bicho pega, eu consigo arrancar um riso da minha mãe, nem que seja aquele riso avesso, aquele riso vomitado, aquele riso foragido, aquele riso com aspecto indecente, impróprio, aquele riso absolutamente incompatível com o estado lastimável das coisas e que, por isso mesmo, a gente gostaria de ter deixado trancafiado pra sempre no baú das coisas jamais manifestadas. Não é que não me interesse o drama de não haver dinheiro pro gás; não é que a ação corrosiva do tempo sobre a dignidade não me afete; não é que a destruição dos sonhos não me destrua também. É que eu sou primo do Carioca, primo do Secão, primo do Lene, sobrinho do finado tio Bira. Em outras palavras, seria um desrespeito muito grande, uma falta de consideração imperdoável e, sobretudo, total incompetência da minha parte, se, tendo nascido na família que nasci, tendo convivido com os parentes que convivi, eu perdesse a oportunidade de fazer uma piada, de absolver uma ironia. É por isso que, por pior que seja a desgraça a atormentar a minha mãe, o que eu sempre digo pra ela é o seguinte: — Deixe estar, mãe. Comemos sementes. Foi o que eu disse, inclusive, quando os cupins decidiram que era melhor amputar a perna da mesa. Nunca saberei aonde o choro teria nos levado, mas o riso nos levou à arte. Fizemos, nós mesmos, uma outra mesa. Elegante, bípede. Uma obra prima. Para construir a armação, desmontamos o que tinha restado de uma pequena estante de livros; serramos alguns pedaços de madeira com a serrinha de cortar cano, enquanto tínhamos paciência; quebramos outros pedaços com golpes de karatê, depois que a paciência se esgotou; e, por fim, pregamos tudo com parafusos tortos, usando o martelinho de bater bife. O grand finale — o vidro temperado da superfície, capaz de aguentar panelas quentes sem estourar — era, na verdade, a tampa que arrancamos de um fogão abandonado. Quando terminamos, dou a minha palavra, olhamos para aquela mesa tosca com toda a altivez deste mundo. Não tivemos o que jantar, naquela noite, mas tivemos algum tipo de satisfação. Matamos algum tipo de fome. E temos mais orgulho das fomes que ocasionalmente conseguimos matar do que vergonha das fomes que às vezes nos matam. José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Figura de Linguagem, 2019) e […]

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Tem um episódio do Pica-Pau que o Urso passa o tempo todo tentando ganhar comida dos turistas, num parque florestal. E, sempre que um plano do coitado dá errado, lá vai o filhote, todo resignado, dizer o seguinte: — Deixe estar, papai. Comemos sementes. Eu não sou desses que pensam que rir é o melhor remédio, mas acho que muitas vezes é o único remédio que sobra. Decidi adotar o bordão. E é com ele que, às vezes, quando o bicho pega, eu consigo arrancar um riso da minha mãe, nem que seja aquele riso avesso, aquele riso vomitado, aquele riso foragido, aquele riso com aspecto indecente, impróprio, aquele riso absolutamente incompatível com o estado lastimável das coisas e que, por isso mesmo, a gente gostaria de ter deixado trancafiado pra sempre no baú das coisas jamais manifestadas. Não é que não me interesse o drama de não haver dinheiro pro gás; não é que a ação corrosiva do tempo sobre a dignidade não me afete; não é que a destruição dos sonhos não me destrua também. É que eu sou primo do Carioca, primo do Secão, primo do Lene, sobrinho do finado tio Bira. Em outras palavras, seria um desrespeito muito grande, uma falta de consideração imperdoável e, sobretudo, total incompetência da minha parte, se, tendo nascido na família que nasci, tendo convivido com os parentes que convivi, eu perdesse a oportunidade de fazer uma piada, de absolver uma ironia. É por isso que, por pior que seja a desgraça a atormentar a minha mãe, o que eu sempre digo pra ela é o seguinte: — Deixe estar, mãe. Comemos sementes. Foi o que eu disse, inclusive, quando os cupins decidiram que era melhor amputar a perna da mesa. Nunca saberei aonde o choro teria nos levado, mas o riso nos levou à arte. Fizemos, nós mesmos, uma outra mesa. Elegante, bípede. Uma obra prima. Para construir a armação, desmontamos o que tinha restado de uma pequena estante de livros; serramos alguns pedaços de madeira com a serrinha de cortar cano, enquanto tínhamos paciência; quebramos outros pedaços com golpes de karatê, depois que a paciência se esgotou; e, por fim, pregamos tudo com parafusos tortos, usando o martelinho de bater bife. O grand finale — o vidro temperado da superfície, capaz de aguentar panelas quentes sem estourar — era, na verdade, a tampa que arrancamos de um fogão abandonado. Quando terminamos, dou a minha palavra, olhamos para aquela mesa tosca com toda a altivez deste mundo. Não tivemos o que jantar, naquela noite, mas tivemos algum tipo de satisfação. Matamos algum tipo de fome. E temos mais orgulho das fomes que ocasionalmente conseguimos matar do que vergonha das fomes que às vezes nos matam. José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Figura de Linguagem, 2019) e […]

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