Crônica | Parêntese

José Falero: insônia

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José Falero: insônia Tentei dormir, mas não rolou. Então, vou contar uma história. Na verdade, algumas histórias. Todas verídicas, por mais incríveis que possam parecer. Não vou citar nomes, pra não ficar chato, mas esses dias, lá no colégio onde eu estudo, disseram que eu tenho cara de ladrão. Disseram isso com todas as letras: que eu tenho cara de ladrão. — Mas o Zé tem cara de ladrão, não tem? Olha ali, olha bem pro Zé. Se tu tá indo pela rua e vem vindo o Zé, assim, com esse capuz? Tu não atravessa a rua? Não fiquei surpreso com aquela “brincadeira”, é claro. E até pensei em perguntar ao camarada como é que é uma cara de ladrão, mas, nesses últimos tempos, tenho me esforçado pra me manter fora de discussões inúteis. Ele não é o único a pensar assim. Acho que todos acabamos reproduzindo falas e pensamentos preconceituosos aqui e ali. Uns reproduzem mais do que outros, mas acho que ninguém escapa. O que me faz lembrar de quando completei a maioridade. Em vez de os meus amigos e familiares virem me dizer “ei, já pode tirar carteira de motorista!”, o que eles vinham me dizer era “ei, agora, se te pegarem roubando ou traficando, tu não sai tão fácil da cadeia!”. Mas se existe a cara de ladrão no âmbito do senso comum preconceituoso deste país, também existe a cara de vítima, e essa cara eu sei que não tenho. Os ladrões não parecem me ver como uma vítima em potencial. Uma vez, de noite, eu sozinho numa parada de ônibus, um cara me aborda e diz o seguinte: — Ei, mano, tem uma passagem de apoio aí? Eu disse que não tinha, e ele desabafou: — É foda! Passei a tarde toda pedindo uma passagem pras pessoas, e todo o mundo se fazendo de louco! Não vou voltar a pé pra casa, irmão. E não vou pedir carona também. Daqui a pouco, vou é tocar alguém pra cima, na real, não quero nem saber. Não queria fazer isso, mas vou ter que fazer. Isso assim, escrito, do jeito que tá aqui, pode dar a entender que o cara tava me ameaçando. Mas ele não tava. Tenho certeza. O tom de voz, a expressão facial, enfim, tudo nele deixa muito claro que era um desabafo. Ele me via como alguém com quem podia falar sem reservas, desabafar mesmo. E o que eu fiz? Eu ri. Ri, porque achei engraçada aquela expressão: “tocar alguém pra cima”. Ri e ainda por cima repeti a expressão: — Ai, ai, “tocar alguém pra cima”… Ele não se aguentou, e acabou rindo também. — Mas é, mano! Porra, o que que custa pagar uma passagem pro cara, né? Num determinado momento da minha vida, achei que era melhor eu bolar uma estratégia, caso um dia fosse assaltado. Nunca considerei a possibilidade de reagir a um assalto, em nenhuma circunstância. Mas eu também não posso me dar ao luxo de sair dando as poucas coisas […]

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Tentei dormir, mas não rolou. Então, vou contar uma história. Na verdade, algumas histórias. Todas verídicas, por mais incríveis que possam parecer. Não vou citar nomes, pra não ficar chato, mas esses dias, lá no colégio onde eu estudo, disseram que eu tenho cara de ladrão. Disseram isso com todas as letras: que eu tenho cara de ladrão. — Mas o Zé tem cara de ladrão, não tem? Olha ali, olha bem pro Zé. Se tu tá indo pela rua e vem vindo o Zé, assim, com esse capuz? Tu não atravessa a rua? Não fiquei surpreso com aquela “brincadeira”, é claro. E até pensei em perguntar ao camarada como é que é uma cara de ladrão, mas, nesses últimos tempos, tenho me esforçado pra me manter fora de discussões inúteis. Ele não é o único a pensar assim. Acho que todos acabamos reproduzindo falas e pensamentos preconceituosos aqui e ali. Uns reproduzem mais do que outros, mas acho que ninguém escapa. O que me faz lembrar de quando completei a maioridade. Em vez de os meus amigos e familiares virem me dizer “ei, já pode tirar carteira de motorista!”, o que eles vinham me dizer era “ei, agora, se te pegarem roubando ou traficando, tu não sai tão fácil da cadeia!”. Mas se existe a cara de ladrão no âmbito do senso comum preconceituoso deste país, também existe a cara de vítima, e essa cara eu sei que não tenho. Os ladrões não parecem me ver como uma vítima em potencial. Uma vez, de noite, eu sozinho numa parada de ônibus, um cara me aborda e diz o seguinte: — Ei, mano, tem uma passagem de apoio aí? Eu disse que não tinha, e ele desabafou: — É foda! Passei a tarde toda pedindo uma passagem pras pessoas, e todo o mundo se fazendo de louco! Não vou voltar a pé pra casa, irmão. E não vou pedir carona também. Daqui a pouco, vou é tocar alguém pra cima, na real, não quero nem saber. Não queria fazer isso, mas vou ter que fazer. Isso assim, escrito, do jeito que tá aqui, pode dar a entender que o cara tava me ameaçando. Mas ele não tava. Tenho certeza. O tom de voz, a expressão facial, enfim, tudo nele deixa muito claro que era um desabafo. Ele me via como alguém com quem podia falar sem reservas, desabafar mesmo. E o que eu fiz? Eu ri. Ri, porque achei engraçada aquela expressão: “tocar alguém pra cima”. Ri e ainda por cima repeti a expressão: — Ai, ai, “tocar alguém pra cima”… Ele não se aguentou, e acabou rindo também. — Mas é, mano! Porra, o que que custa pagar uma passagem pro cara, né? Num determinado momento da minha vida, achei que era melhor eu bolar uma estratégia, caso um dia fosse assaltado. Nunca considerei a possibilidade de reagir a um assalto, em nenhuma circunstância. Mas eu também não posso me dar ao luxo de sair dando as poucas coisas […]

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