Crônica | Parêntese

José Falero: passe-livre

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José Falero: passe-livre Uma vez, há coisa de mil anos, quando podíamos circular livremente por aí, testemunhei um acontecimento notável. Foi numa viagem de ônibus, onde suspeito ocorrerem todas as coisas dignas de nota. Meu destino, então, já não o recordo, mas embarquei no mesmo lugar de sempre: a parada número 12 da Lomba do Pinheiro. Basta dizer que era dia de passe-livre. Levei metade da viagem para vencer os três passos entre a porta e a roleta, e não pude deixar de me perguntar quem, afinal de contas, seria o Ulisses na fila do pão. Depois, avancei ainda o quanto pude para dentro da multidão compactada, até já não saber mais quais joelhos e quais cotovelos me pertenciam. Enfrentar o 398 em dia de passe-livre talvez seja o melhor curso intensivo de dança que eu poderia recomendar. O sujeito embarca na 12, e mais ou menos ali pela Igreja São Jorge já deve estar expert em dançar Stayin’ Alive, dos Bee Gees, porque, enquanto o ônibus galopa em direção ao Centro, a única forma de ir achando onde se segurar é justamente por meio de rigorosa obediência aos movimentos daquela coreografia, ora esticando o braço para cá, ora esticando o braço para lá, a perna sempre estendida no sentido oposto. De fato, observando o povo nesse balé, quase dá para escutar o refrão: “Ah!, Ah!, Ah!, Ah!, Stayin’ Alive!, Stayin’ Alive!”. Atraindo sobre si uma quantidade incalculável de inveja, vinda de todas as direções, dois malandros que estavam juntos, no lugar certo e na hora certa, foram agraciados com o milagre pelo qual todos ali orávamos: conseguiram, ao mesmo tempo, lugar para se sentarem, porque uma mãe e uma filha se levantaram exatamente diante deles. Sorriso de orelha a orelha, eis que estavam ambos livres da tortura coreográfica. Reparei melhor na dupla: bonés manchados, como os meus; dentes estragados, como os meus; barbas mal feitas, como a minha; camisetas de clube de futebol falsificadas, como as minhas; bermudas de tamanho impróprio, como as minhas; chinelos gastos, como o meu. O santo que concede assento no ônibus lotado é o único no qual ainda posso depositar um pouco de fé. Colado na janela, um pequeno cartaz dizia, implacável: “Um fone na sua cabeça é um alívio para a cabeça dos outros”. Mas, ignorando completamente o aviso, e tampouco ligando para as caretas de desprezo que se desenhavam aqui e ali, os malandros não só ouviam funk a toda a altura numa caixinha de som xexelenta, como faziam coro ao cantor, impávidos. Pense o leitor o que quiser, mas eu, de minha parte, estou sempre disposto a perdoar inconveniências desse tipo, porque há poucas coisas no mundo capazes de me despertar tanta admiração quanto um espírito transgressor. Detesto regras. A maioria delas quer me ver morto. E aconteceu que, a certa altura da viagem, decidiu embarcar naquele inferno uma senhorinha idosa, bastante frágil. Ela sabia muito bem do sufoco no qual estava se metendo. Não podia ser mais evidente que no interior daquele ônibus […]

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Uma vez, há coisa de mil anos, quando podíamos circular livremente por aí, testemunhei um acontecimento notável. Foi numa viagem de ônibus, onde suspeito ocorrerem todas as coisas dignas de nota. Meu destino, então, já não o recordo, mas embarquei no mesmo lugar de sempre: a parada número 12 da Lomba do Pinheiro. Basta dizer que era dia de passe-livre. Levei metade da viagem para vencer os três passos entre a porta e a roleta, e não pude deixar de me perguntar quem, afinal de contas, seria o Ulisses na fila do pão. Depois, avancei ainda o quanto pude para dentro da multidão compactada, até já não saber mais quais joelhos e quais cotovelos me pertenciam. Enfrentar o 398 em dia de passe-livre talvez seja o melhor curso intensivo de dança que eu poderia recomendar. O sujeito embarca na 12, e mais ou menos ali pela Igreja São Jorge já deve estar expert em dançar Stayin’ Alive, dos Bee Gees, porque, enquanto o ônibus galopa em direção ao Centro, a única forma de ir achando onde se segurar é justamente por meio de rigorosa obediência aos movimentos daquela coreografia, ora esticando o braço para cá, ora esticando o braço para lá, a perna sempre estendida no sentido oposto. De fato, observando o povo nesse balé, quase dá para escutar o refrão: “Ah!, Ah!, Ah!, Ah!, Stayin’ Alive!, Stayin’ Alive!”. Atraindo sobre si uma quantidade incalculável de inveja, vinda de todas as direções, dois malandros que estavam juntos, no lugar certo e na hora certa, foram agraciados com o milagre pelo qual todos ali orávamos: conseguiram, ao mesmo tempo, lugar para se sentarem, porque uma mãe e uma filha se levantaram exatamente diante deles. Sorriso de orelha a orelha, eis que estavam ambos livres da tortura coreográfica. Reparei melhor na dupla: bonés manchados, como os meus; dentes estragados, como os meus; barbas mal feitas, como a minha; camisetas de clube de futebol falsificadas, como as minhas; bermudas de tamanho impróprio, como as minhas; chinelos gastos, como o meu. O santo que concede assento no ônibus lotado é o único no qual ainda posso depositar um pouco de fé. Colado na janela, um pequeno cartaz dizia, implacável: “Um fone na sua cabeça é um alívio para a cabeça dos outros”. Mas, ignorando completamente o aviso, e tampouco ligando para as caretas de desprezo que se desenhavam aqui e ali, os malandros não só ouviam funk a toda a altura numa caixinha de som xexelenta, como faziam coro ao cantor, impávidos. Pense o leitor o que quiser, mas eu, de minha parte, estou sempre disposto a perdoar inconveniências desse tipo, porque há poucas coisas no mundo capazes de me despertar tanta admiração quanto um espírito transgressor. Detesto regras. A maioria delas quer me ver morto. E aconteceu que, a certa altura da viagem, decidiu embarcar naquele inferno uma senhorinha idosa, bastante frágil. Ela sabia muito bem do sufoco no qual estava se metendo. Não podia ser mais evidente que no interior daquele ônibus […]

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