Crônica | Parêntese

José Falero: Senhor de todos os músculos

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José Falero: Senhor de todos os músculos Não posso atestar a veracidade do que vou dizer agora, mas vi por aí que um simples sorriso coloca nada menos do que 12 músculos em movimento. A gargalhada, segundo consta, movimenta o dobro: 24 músculos. E parece que o melhor tipo de conversa — aquela acompanhada de risada — vai ainda mais longe: são, ao todo, inacreditáveis 84 músculos movimentando-se. Porém, quando vi isso, fiquei me perguntando se as pessoas que empreenderam esse estudo — ou que fantasiaram essa história toda —, fiquei me perguntando se elas por acaso levaram em consideração o corpo inteiro ou apenas a face. Afinal, engana-se redondamente quem pensa que o sorriso é senhor apenas das bochechas: seus domínios compreendem a cabeça inteira, além dos ombros, dos braços e, na verdade, de todo o resto. O leitor duvida? Pois bem: tendo em vista que a risada não passa de um sorriso barulhento, e que a gargalhada é apenas um sorriso mais barulhento ainda, não seria ele próprio, o sorriso, o responsável pela agitação total daquele que acaba de ouvir uma boa piada, ou que acaba de testemunhar o inusitado, o cômico, ou ainda que acaba de ser surpreendido com a fabulosa promessa de um futuro pleno, próspero, saudável e feliz? Não seria ele próprio, o sorriso, o responsável pelo chacoalhar de ombros daquela criatura, pelo fechamento de seus olhos, pela dilatação de suas narinas, pela inclinação de sua cabeça, pela dobra de seu corpo sobre si mesmo, pela pulsação de sua barriga, por sua mão esquerda espalmada no umbigo enquanto a direita dá tapas na perna e a sola do pé bate com força e insistência no chão? Qual seria a força por trás de tudo isso, senão o sorriso? A verdade é que o nosso espírito, a nossa alma — ou seja lá o nome que se prefira dar a essa porção imaterial que nos compõe —, a verdade é que isso passa a maior parte do tempo encolhido, borocoxô, submisso a forças externas, refugiado no recôndito de nosso ser. Contudo, à maneira de um sol indeciso, que ameaça nascer e logo torna a recolher-se, sem jamais atingir o zênite, assim essa nossa parte, em momentos efêmeros, rebela-se e avoluma-se, ao ponto de não cabermos mais em nós mesmos, e é justamente aí que nos nasce um sorriso. Dessa perspectiva, o sorriso, para além de sua sabida qualidade de expressão máxima da felicidade humana, apresenta-se mesmo como indício de que o mundo material seja insuficiente para a nossa plena existência. Jamais existiremos por completo se não pudermos sorrir. Sei disso por experiência própria, inclusive. Inibido pelo constrangimento de exibir dentes estragados, sinto o tempo todo — e de maneira tão palpável, que quase posso traduzir em números —, sinto o tempo todo que seria capaz de muito mais coisas, que gozaria de uma existência muito mais substancial se conseguisse sorrir sem reservas. Mas, bem, não consigo. Sorrir, para mim, não é tão simples. E foi justamente isso que me permitiu tomar consciência de […]

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Não posso atestar a veracidade do que vou dizer agora, mas vi por aí que um simples sorriso coloca nada menos do que 12 músculos em movimento. A gargalhada, segundo consta, movimenta o dobro: 24 músculos. E parece que o melhor tipo de conversa — aquela acompanhada de risada — vai ainda mais longe: são, ao todo, inacreditáveis 84 músculos movimentando-se. Porém, quando vi isso, fiquei me perguntando se as pessoas que empreenderam esse estudo — ou que fantasiaram essa história toda —, fiquei me perguntando se elas por acaso levaram em consideração o corpo inteiro ou apenas a face. Afinal, engana-se redondamente quem pensa que o sorriso é senhor apenas das bochechas: seus domínios compreendem a cabeça inteira, além dos ombros, dos braços e, na verdade, de todo o resto. O leitor duvida? Pois bem: tendo em vista que a risada não passa de um sorriso barulhento, e que a gargalhada é apenas um sorriso mais barulhento ainda, não seria ele próprio, o sorriso, o responsável pela agitação total daquele que acaba de ouvir uma boa piada, ou que acaba de testemunhar o inusitado, o cômico, ou ainda que acaba de ser surpreendido com a fabulosa promessa de um futuro pleno, próspero, saudável e feliz? Não seria ele próprio, o sorriso, o responsável pelo chacoalhar de ombros daquela criatura, pelo fechamento de seus olhos, pela dilatação de suas narinas, pela inclinação de sua cabeça, pela dobra de seu corpo sobre si mesmo, pela pulsação de sua barriga, por sua mão esquerda espalmada no umbigo enquanto a direita dá tapas na perna e a sola do pé bate com força e insistência no chão? Qual seria a força por trás de tudo isso, senão o sorriso? A verdade é que o nosso espírito, a nossa alma — ou seja lá o nome que se prefira dar a essa porção imaterial que nos compõe —, a verdade é que isso passa a maior parte do tempo encolhido, borocoxô, submisso a forças externas, refugiado no recôndito de nosso ser. Contudo, à maneira de um sol indeciso, que ameaça nascer e logo torna a recolher-se, sem jamais atingir o zênite, assim essa nossa parte, em momentos efêmeros, rebela-se e avoluma-se, ao ponto de não cabermos mais em nós mesmos, e é justamente aí que nos nasce um sorriso. Dessa perspectiva, o sorriso, para além de sua sabida qualidade de expressão máxima da felicidade humana, apresenta-se mesmo como indício de que o mundo material seja insuficiente para a nossa plena existência. Jamais existiremos por completo se não pudermos sorrir. Sei disso por experiência própria, inclusive. Inibido pelo constrangimento de exibir dentes estragados, sinto o tempo todo — e de maneira tão palpável, que quase posso traduzir em números —, sinto o tempo todo que seria capaz de muito mais coisas, que gozaria de uma existência muito mais substancial se conseguisse sorrir sem reservas. Mas, bem, não consigo. Sorrir, para mim, não é tão simples. E foi justamente isso que me permitiu tomar consciência de […]

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