Ensaio | Parêntese

José Francisco Botelho: Roger Scruton (1944-2020)

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José Francisco Botelho: Roger Scruton (1944-2020) 1. Uma das últimas coisas que o inglês Sir Roger Scruton fez na vida foi visitar o Brasil.  A viagem ocorreu em um ano conturbado para o maior filósofo do conservadorismo contemporâneo, celebrado e detestado em igual medida onde quer que seus livros tenham chegado. Em abril de 2019, Scruton fora vítima de uma tentativa de “assassinato de reputação” nas páginas da revista New Statesman, que esquartejou e remendou uma entrevista sua para fazê-lo parecer racista. A repercussão do caso fez com que Scruton perdesse um cargo no governo – demissão que não foi revertida quando a falsidade da matéria veio à tona. Em julho, ainda sob o impacto dessa confusão e já sofrendo os sintomas do câncer que logo haveria de derrubá-lo, Scruton esteve em São Paulo e Porto Alegre para o projeto Fronteiras do Pensamento. Surpreso ante a boa recepção, chegou a brincar com a possibilidade de mudar-se para o país, como refugiado. Em seu diário, regularmente publicado em The Spectator, Scruton escreveu o seguinte trecho sobre a experiência:  Por razões que não consigo realmente decifrar, tenho um fã clube no Brasil, e finalmente concordei em aparecer lá para falar sobre o sentido da vida. Não tenho me sentido bem, e a jornada me desgasta muito. Fico em meu hotel, lendo Shakespeare. Gemo de desconforto ao passar por ruas onde nenhum homem em sã consciência pensaria em andar, e sou dolorosamente transportado de um lado a outro para dar palestras a multidões de jovens, todos os quais parecem devotados à tarefa de salvar a civilização ocidental no ponto mais remoto aonde chegou, e que sucede ser o Brasil. Talvez aqui estejam mais aptos que eu a perceber que a alternativa não é uma outra e melhor civilização, mas civilização nenhuma.  Seis meses depois, Scruton morreu em sua casa, em Lincolnshire, na companhia dos familiares.  Relendo as palavras que escreveu após sua visita ao Brasil, encontro alguns dos elementos que me atraíram e mais tarde me incomodaram em seu pensamento e sua obra. Vamos começaram pelos traços que me desagradam – pois este é um obituário, e quero terminar falando coisas boas.  Segundo seu próprio testemunho, Scruton converteu-se ao conservadorismo filosófico exatamente quando sua geração ensaiava reerguer as barricadas revolucionárias: maio de 1968, em Paris. Irritou-se com os jovens que arrebentavam vidros e arrancavam paralelepípedos, considerando-os membros de uma classe média mimada, entediada e sem qualquer conhecimento direto sobre os regimes totalitários que defendiam. “Naquele momento, percebi que estava mais interessado em conservar as coisas do que em destruí-las”, observou anos mais tarde.  Scruton começou sua defesa da tradição filosófica, moral e política do Ocidente em The Meaning of Conservatism, de 1980. Poderá algum espírito sensato negar que, por aquele tempo, a tal desconstrução das humanidades já fora longe demais? Isso é uma pergunta sincera, não uma ironia. Quando se chega ao ponto de negar a qualidade intrínseca de Macbeth ou da Divina Comédia, atribuindo a percepção de sua grandeza estética a uma espécie de conspiração secular, então me […]

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1. Uma das últimas coisas que o inglês Sir Roger Scruton fez na vida foi visitar o Brasil.  A viagem ocorreu em um ano conturbado para o maior filósofo do conservadorismo contemporâneo, celebrado e detestado em igual medida onde quer que seus livros tenham chegado. Em abril de 2019, Scruton fora vítima de uma tentativa de “assassinato de reputação” nas páginas da revista New Statesman, que esquartejou e remendou uma entrevista sua para fazê-lo parecer racista. A repercussão do caso fez com que Scruton perdesse um cargo no governo – demissão que não foi revertida quando a falsidade da matéria veio à tona. Em julho, ainda sob o impacto dessa confusão e já sofrendo os sintomas do câncer que logo haveria de derrubá-lo, Scruton esteve em São Paulo e Porto Alegre para o projeto Fronteiras do Pensamento. Surpreso ante a boa recepção, chegou a brincar com a possibilidade de mudar-se para o país, como refugiado. Em seu diário, regularmente publicado em The Spectator, Scruton escreveu o seguinte trecho sobre a experiência:  Por razões que não consigo realmente decifrar, tenho um fã clube no Brasil, e finalmente concordei em aparecer lá para falar sobre o sentido da vida. Não tenho me sentido bem, e a jornada me desgasta muito. Fico em meu hotel, lendo Shakespeare. Gemo de desconforto ao passar por ruas onde nenhum homem em sã consciência pensaria em andar, e sou dolorosamente transportado de um lado a outro para dar palestras a multidões de jovens, todos os quais parecem devotados à tarefa de salvar a civilização ocidental no ponto mais remoto aonde chegou, e que sucede ser o Brasil. Talvez aqui estejam mais aptos que eu a perceber que a alternativa não é uma outra e melhor civilização, mas civilização nenhuma.  Seis meses depois, Scruton morreu em sua casa, em Lincolnshire, na companhia dos familiares.  Relendo as palavras que escreveu após sua visita ao Brasil, encontro alguns dos elementos que me atraíram e mais tarde me incomodaram em seu pensamento e sua obra. Vamos começaram pelos traços que me desagradam – pois este é um obituário, e quero terminar falando coisas boas.  Segundo seu próprio testemunho, Scruton converteu-se ao conservadorismo filosófico exatamente quando sua geração ensaiava reerguer as barricadas revolucionárias: maio de 1968, em Paris. Irritou-se com os jovens que arrebentavam vidros e arrancavam paralelepípedos, considerando-os membros de uma classe média mimada, entediada e sem qualquer conhecimento direto sobre os regimes totalitários que defendiam. “Naquele momento, percebi que estava mais interessado em conservar as coisas do que em destruí-las”, observou anos mais tarde.  Scruton começou sua defesa da tradição filosófica, moral e política do Ocidente em The Meaning of Conservatism, de 1980. Poderá algum espírito sensato negar que, por aquele tempo, a tal desconstrução das humanidades já fora longe demais? Isso é uma pergunta sincera, não uma ironia. Quando se chega ao ponto de negar a qualidade intrínseca de Macbeth ou da Divina Comédia, atribuindo a percepção de sua grandeza estética a uma espécie de conspiração secular, então me […]

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