Parêntese | Retrato escrito

Katia Suman: Porto, ou Esparta Alegre, por Humberto Gessinger

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Katia Suman: Porto, ou Esparta Alegre, por Humberto Gessinger Esparta Alegre é uma expressão que só quem é de Porto Alegre pode entender. É um verdadeiro achado, a gente lê e o cérebro já vai dando cambalhotas. Fina ironia, choque de realidade. Não precisa de explicação mas, me acompanhem, é Esparta, é rígida, é dura, é militarizada, mas, vejam, é alegre. Pensei no Bloco da Laje invadindo um pelotão militar no meio da avenida. Lá vem Esparta Alegre, descendo a ladeira. Esparta Alegre é como o Humberto Gessinger chama Porto Alegre em dois de seus livros, Mapas do acaso, de 2011, e Nas entrelinhas do horizonte, de 2012, ambos publicados pela Belas-Letras. Minha cidade, Esparta Alegre, tem um clima maluco. Estou sendo literal, falando de meteorologia. Se Vivaldi fosse porto-alegrense, teria escrito As Quatro Estações em um dia. ou As lojas de instrumentos de Porto Alegre (ah, Esparta Alegre: pretensa Liverpool jamaicana) estão cheias de guitarras retrô, vintage… Se pudessem venderiam também o telhado de Abbey Road. You say you wanna a revolution? Well, you know… A Porto Alegre que aparece nestes livros é a que a gente conhece bem, sem apreço por sua história, sem cuidado com suas ruas, sem consideração alguma com os pedestres. O olhar é do cara que faz canções, mas também do cara que estudou Arquitetura. Moro numa cidade que anda e caga para quem anda. O motorista não respeita a faixa, o condomínio não respeita a calçada, o dono do cachorro não respeita a higiene.” À noite, sensores de movimento acendem as luzes dos condomínios quando passo. Deixo para trás um rastro de luz inútil, ilhas de claridade desabitada. Sou apenas um vulto suspeito para motoristas que, assustados, tentam entrar na garagem antes mesmo de o portão abrir. Calma, meu senhor, estou só caminhando, não me interesso por seu carro, pode esperar os guardas do castelo baixarem a ponte sobre o fosso dos jacarés. Havia terrenos baldios. Espaço de transição entre bairros, cidades, pessoas. Havia jardins, transição entre espaço público e privado. Estão todos cercados. Há muros e grades. O que é meu é meu; o que não é meu não é de ninguém. Não tome minha conversa como melancolia saudosista. Só estou vendo as flores crescerem. Com seus espinhos. O crescimento desordenado, as ideias de jerico aplicadas ao urbanismo, a questão do tamanho, está tudo aqui: Sinto as dores do crescimento de Porto Alegre. Talvez todo mundo tenha a mesma impressão de sua cidade, nos seus dias. O tamanho sempre foi uma questão para nossa cidade, assim como a distância das (outras) capitais. Uma avenida importante, a Dom Pedro, foi ampliada. De duas, para quatro pistas. Agora chamam de 3a Perimetral, impessoal até no nome (caminhar por ela, economizando o dinheiro do ônibus, foi o que começou minha coleção de discos e livros). O asfalto transbordou, as árvores dançaram, o horizonte visual ficou mais amplo. O que deveria deixar a cidade “maior” teve efeito contrário. Agora, do ponto mais alto da avenida, se enxerga os limites da cidade. Parece que encolheu. Uma […]

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Esparta Alegre é uma expressão que só quem é de Porto Alegre pode entender. É um verdadeiro achado, a gente lê e o cérebro já vai dando cambalhotas. Fina ironia, choque de realidade. Não precisa de explicação mas, me acompanhem, é Esparta, é rígida, é dura, é militarizada, mas, vejam, é alegre. Pensei no Bloco da Laje invadindo um pelotão militar no meio da avenida. Lá vem Esparta Alegre, descendo a ladeira. Esparta Alegre é como o Humberto Gessinger chama Porto Alegre em dois de seus livros, Mapas do acaso, de 2011, e Nas entrelinhas do horizonte, de 2012, ambos publicados pela Belas-Letras. Minha cidade, Esparta Alegre, tem um clima maluco. Estou sendo literal, falando de meteorologia. Se Vivaldi fosse porto-alegrense, teria escrito As Quatro Estações em um dia. ou As lojas de instrumentos de Porto Alegre (ah, Esparta Alegre: pretensa Liverpool jamaicana) estão cheias de guitarras retrô, vintage… Se pudessem venderiam também o telhado de Abbey Road. You say you wanna a revolution? Well, you know… A Porto Alegre que aparece nestes livros é a que a gente conhece bem, sem apreço por sua história, sem cuidado com suas ruas, sem consideração alguma com os pedestres. O olhar é do cara que faz canções, mas também do cara que estudou Arquitetura. Moro numa cidade que anda e caga para quem anda. O motorista não respeita a faixa, o condomínio não respeita a calçada, o dono do cachorro não respeita a higiene.” À noite, sensores de movimento acendem as luzes dos condomínios quando passo. Deixo para trás um rastro de luz inútil, ilhas de claridade desabitada. Sou apenas um vulto suspeito para motoristas que, assustados, tentam entrar na garagem antes mesmo de o portão abrir. Calma, meu senhor, estou só caminhando, não me interesso por seu carro, pode esperar os guardas do castelo baixarem a ponte sobre o fosso dos jacarés. Havia terrenos baldios. Espaço de transição entre bairros, cidades, pessoas. Havia jardins, transição entre espaço público e privado. Estão todos cercados. Há muros e grades. O que é meu é meu; o que não é meu não é de ninguém. Não tome minha conversa como melancolia saudosista. Só estou vendo as flores crescerem. Com seus espinhos. O crescimento desordenado, as ideias de jerico aplicadas ao urbanismo, a questão do tamanho, está tudo aqui: Sinto as dores do crescimento de Porto Alegre. Talvez todo mundo tenha a mesma impressão de sua cidade, nos seus dias. O tamanho sempre foi uma questão para nossa cidade, assim como a distância das (outras) capitais. Uma avenida importante, a Dom Pedro, foi ampliada. De duas, para quatro pistas. Agora chamam de 3a Perimetral, impessoal até no nome (caminhar por ela, economizando o dinheiro do ônibus, foi o que começou minha coleção de discos e livros). O asfalto transbordou, as árvores dançaram, o horizonte visual ficou mais amplo. O que deveria deixar a cidade “maior” teve efeito contrário. Agora, do ponto mais alto da avenida, se enxerga os limites da cidade. Parece que encolheu. Uma […]

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