Nossos Mortos | Parêntese

Laura Backes: Peixe bom dá no riacho

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Laura Backes: Peixe bom dá no riacho Antes de começar a leitura, coloca aí pra ouvir “Morro Velho”, do Milton Nascimento, cantada pela Elis. Colocou? Explico: pouco guardo dos detalhes exatos de livros, peças ou filmes que li ou vi na infância, e também depois dela. Canções, não. Pelo menos canções que ouvi muitas vezes, como é o caso de “Morro Velho”, que ouvia muito numa fita basf laranja na minha adolescência. Às vezes, a letra vem inteirinha, intacta na memória. Talvez por ter pisado e repisado e armado firme o caminho neuronal pra se fixar na minha cachola. Morro de inveja dos memoriosos. Em mim, as obras ficam impregnadas nos mares de dentro, emaranhadas em fios de memórias que vão se entrelaçando e se diluindo e fazendo parte daquela que vou chamando de Eu. Pois então: os fios da canção do Milton se entrelaçam com as lembranças que eu tenho dos livros do José Mauro de Vasconcelos. Eu nunca li Meu pé de laranja-lima. Não que eu tivesse intenção de evitar o livro mais famoso dele. O caso é que eu lia quase que somente o que tivesse na estante lá de casa, já que depois da morte precoce do meu pai a grana escasseou e, com ela, as possibilidades de novas obras. Ainda assim, tinha bastante coisa pra ler ali e pra variadas idades — acima de mim, a caçula, tinham outros seis irmãos. O livre acesso àquela prateleira permitiu que eu fizesse um percurso particular de leituras ao acaso e, nesse trajeto, o primeiro livro que li do José Mauro foi Coração de Vidro, lá pelos meus 9 anos. O que guardo dele em mim? A principal lembrança é que eram contos narrados na primeira pessoa, nos quais em nenhum deles o narrador era um humano. Em um era um peixe, noutro um potrinho, uma árvore, ou ainda um pássaro. Outra coisa comum a todos era a tristeza dos relatos, que refletiam as pequenas crueldades do homem civilizado nas suas formas de domesticação de outros seres. O peixe era triste porque estava confinado a um pequeno aquário, o pássaro numa gaiola, o potrinho havia sido mimado enquanto atendia os desejos de competição de seus donos até quebrar a pata e ser esquecido. A história da árvore é a que ecoa a canção do Milton. Fala da passagem de tempo na vida de um menino até se tornar um adulto e de como esta passagem modifica sua relação com uma mangueira que fora sua confidente e companheira na infância. Se as lembranças aqui podem parecer pueris, elas podem ecoar pensamentos atuais nas quais falamos do antropoceno – essa ideia do humano estar no centro do mundo – como o principal destruidor das outras espécies, dos ecossistemas naturais do planeta. Ler aqueles contos me ajudou a abrir a sensibilidade pra me colocar no lugar do outro, mesmo que aquele outro seja uma árvore, ou um animal. Abriu para entender cosmovisões indígenas e de como elas têm a nos ensinar sobre o nosso pensamento domesticado, no qual […]

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Antes de começar a leitura, coloca aí pra ouvir “Morro Velho”, do Milton Nascimento, cantada pela Elis. Colocou? Explico: pouco guardo dos detalhes exatos de livros, peças ou filmes que li ou vi na infância, e também depois dela. Canções, não. Pelo menos canções que ouvi muitas vezes, como é o caso de “Morro Velho”, que ouvia muito numa fita basf laranja na minha adolescência. Às vezes, a letra vem inteirinha, intacta na memória. Talvez por ter pisado e repisado e armado firme o caminho neuronal pra se fixar na minha cachola. Morro de inveja dos memoriosos. Em mim, as obras ficam impregnadas nos mares de dentro, emaranhadas em fios de memórias que vão se entrelaçando e se diluindo e fazendo parte daquela que vou chamando de Eu. Pois então: os fios da canção do Milton se entrelaçam com as lembranças que eu tenho dos livros do José Mauro de Vasconcelos. Eu nunca li Meu pé de laranja-lima. Não que eu tivesse intenção de evitar o livro mais famoso dele. O caso é que eu lia quase que somente o que tivesse na estante lá de casa, já que depois da morte precoce do meu pai a grana escasseou e, com ela, as possibilidades de novas obras. Ainda assim, tinha bastante coisa pra ler ali e pra variadas idades — acima de mim, a caçula, tinham outros seis irmãos. O livre acesso àquela prateleira permitiu que eu fizesse um percurso particular de leituras ao acaso e, nesse trajeto, o primeiro livro que li do José Mauro foi Coração de Vidro, lá pelos meus 9 anos. O que guardo dele em mim? A principal lembrança é que eram contos narrados na primeira pessoa, nos quais em nenhum deles o narrador era um humano. Em um era um peixe, noutro um potrinho, uma árvore, ou ainda um pássaro. Outra coisa comum a todos era a tristeza dos relatos, que refletiam as pequenas crueldades do homem civilizado nas suas formas de domesticação de outros seres. O peixe era triste porque estava confinado a um pequeno aquário, o pássaro numa gaiola, o potrinho havia sido mimado enquanto atendia os desejos de competição de seus donos até quebrar a pata e ser esquecido. A história da árvore é a que ecoa a canção do Milton. Fala da passagem de tempo na vida de um menino até se tornar um adulto e de como esta passagem modifica sua relação com uma mangueira que fora sua confidente e companheira na infância. Se as lembranças aqui podem parecer pueris, elas podem ecoar pensamentos atuais nas quais falamos do antropoceno – essa ideia do humano estar no centro do mundo – como o principal destruidor das outras espécies, dos ecossistemas naturais do planeta. Ler aqueles contos me ajudou a abrir a sensibilidade pra me colocar no lugar do outro, mesmo que aquele outro seja uma árvore, ou um animal. Abriu para entender cosmovisões indígenas e de como elas têm a nos ensinar sobre o nosso pensamento domesticado, no qual […]

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