Memória

Uma vida escrita à mão

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Uma vida escrita à mão

Entre diários, cartas e confidências, o caprichoso resgate de Enoi Salete Riegel

Os cadernos, organizados por data: “Pensei em trocar as capas, mas como eram de papel, de rolo do armazém, deixei.”

Por Lolita Beretta

Aos 15 anos, na pequena cidade de Laranjeiras do Sul, no Paraná, Enoi começou a anotar registros de sua vida em diários. E desde então não parou mais.

Era o ano de 1963. De lá para cá, as memórias da gaúcha de Maximiliano de Almeida foram escritas também em Iguatemi, interior de Canguçu, e em Campo Bom, onde vive há 34 anos, ao lado do marido. 

Durante a quarentena, em processo de reminiscências, animou-se a vasculhar a própria história, cuidando, é claro, para reabri-la durante o dia: “Não gostaria de olhar alguns cadernos à noite, pois com certeza as lembranças me assaltariam.”

Compartilhou com a Parêntese alguns trechos dessa longa vida de escrita particular e também a experiência de resgatar as memórias, há mais de 50 anos encaixotadas em algum canto da casa.

Para começo de conversa: em 1963, as primeiras linhas de uma longa história.

Ler e escrever para lembrar e voltar

Laranjeiras, cidade para onde Enoi se mudou em 1955, era, segundo ela, “pequena, poeirenta e violenta”. Mas foi lá que pôde aprimorar, nos anos de ginásio, a relação com a leitura e a escrita, forte herança do avô professor e contador: “sempre tivemos muitos livros em casa, que comprávamos das irmãs que vendiam de porta em porta. No ginásio, tive professores geniais, que incentivavam tanto a leitura quanto a escrita”. Incentivo, aliás, que assumiu configurações curiosas quando a jovem confessou para a professora que recebia dinheiro de colegas para fazer suas redações: “Ela me disse: ‘faça, aprimore a escrita e deixe que eles paguem’. E assim continuei.” Foram os primeiros “trocos” na vida de Enoi, hoje professora aposentada, com 72 anos.

Mesmo no Paraná, o vínculo com o Rio Grande do Sul, para onde voltaria em 1971, parecia se misturar ao gosto pelas histórias e pelo registro da vida: frequentando a casa de um casal de professores gaúchos, tinha acesso à biblioteca, segundo ela, fabulosa. A única livraria da cidade também era de um gaúcho. Também nessa época, tempo de colecionar selos e postais, publicou o nome no Correio Infantil, do jornal Correio do Povo, e assim passou a receber cartas gaúchas: “Era o jornal que um amigo da família assinava. Eu e minhas colegas publicamos nossos nomes e recebemos muitas cartas, principalmente do RS. Depois, fazíamos exposições dos postais na escola.” Além de postais e selos, as correspondências renderam a Enoi bonitas amizades e mesmo uma visita a Caxias do Sul, algum tempo depois.

Os namoros, conta Enoi, também se davam especialmente pela escrita: “era na base dos bilhetes. Uns entregavam pelos outros, ou eram deixados na carteira pelos estudantes do noturno, e de manhã pegávamos.” No fim do namoro, eram devolvidas todas as cartas.

Naquela época, eram tantos os acontecimentos da vida de escola, namoros e amigos, que chegava a escrever duas, até três vezes por dia. “Hoje está mais para um ‘semanário’. Ainda assim, é sabido de todos, e fonte até hoje de histórias. Aqui na família quando temos dúvida quanto a um fato, a uma data, sempre dizem: ‘deixem a mãe confirmar’.”

Foi em uma cuidadosa escrita, carregada de lembranças, também em formato de correspondência – dessa vez virtual -, que Enoi pôde contar à Parêntese como foi o reencontro com seus cadernos.

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“Todos com mais de 50 devem ter assinado algum”. Os cadernos, que se chamavam questionários, eram passados entre os colegas, que respondiam, cada um, em um número. Nesse caderno, as confidências de Enoi foram escritas com o número 2.

***

Campo Bom, junho de 2020.

Querido professor Fischer,

Hoje de manhã dei uma olhada nos meus diários, com direito a palpitações. Relendo as lembranças, depois de mais de 50 anos encaixotadas, fiquei impressionada com a força daqueles amores e daqueles escritos. 

Adorei ver que escrevia corretamente. Alguns acentos já não se usam mais.

Reparei que em minhas primeiras anotações, de 1963 a 1970, registrava de tudo: fatos políticos, placares de jogos nacionais, mortes de autoridades mundiais – Churchill, os Kennedy, papas, reis. Registrava o tempo, como a nevasca de agosto de 1965, e nascimentos e aniversários de amigos e professores. Anotava também livros que lia e filmes que assistia, o que faço até hoje. Acho que a maioria dos filmes era do Mazzaropi (a fita arrebentava muitas vezes e os jovens batiam o pé no assoalho de madeira).

Observei também que era muito romântica e escrevia textos melosos. Acho que copiava de livros que lia (hoje soam meio ridículos). Tudo era meio trágico, mas movido a paixões. Nos primeiros anos, ora era um, ora outro, depois queria morrer pelo primeiro. Devia ser porque não era nada real: um olhar, um tchau e muitas cartas.

Gostei de revisitar o passado. Algumas dores, algumas perdas, e muitas, muitas saudades. Gosto da minha descrição de quando a nossa segunda filha aprendeu andar de bicicleta. E de negros crianças e adultos com brancos em uma Congregação Mista, em Canguçu, cidade onde chegamos em fevereiro de 1971. Era uma outra cultura, outro povo, racismo à flor da pele (me incluindo, devido à minha origem italiana). Lembro da falta de energia elétrica, de farmácia, padaria e telefone. Na verdade, é mais fácil dizer o que tinha: casa, moinho, venda, posto de gasolina, movido a manivela e casa dos colonos à beira da estrada.

O que me chamou a atenção naquele lugar: as galinhas eram criadas soltas, os jardins eram cercados. Só os homens costumavam ir ao açougue. Além de mim, ia apenas a dona da venda. O motorista do ônibus parava em qualquer lugar para embarcar e desembarcar passageiros, e trazia da cidade o que faltava lá fora: remédios, linhas, deixava recados na rádio. Para mim, trazia o jornal e pão. Eu esperava na frente de casa e ele jogava no embalo. Não existiam banheiros nas casas, e o nosso era atração. 

O que mais me incomodava era a diferença para com os negros. Canguçu tem uma expressiva população negra, resquício dos escravos que foram trabalhar na plantação de linho Cânhamo em Canguçu Velho. Muitos eram luteranos e na Igreja sentavam nos últimos bancos e comungavam por último. 

Lendo as anotações, notei que a partir de 1970 elas ficaram mais pessoais, e assim até hoje. Deve ter sido a minha idade mais “responsável”. Aquele mundo de escola, amigos e amores mudou drasticamente. Me vi num lugar estranho, idioma, religião, hábitos e realidade. Mas foi minha vida e eu estava (ainda estou) com quem amava (e ainda amo).

Em 1974, comecei lecionando em uma Escola Paroquial e em agosto do mesmo ano fui nomeada Professora do Estado. O que anotei desse tempo foram as muitas festas de lançamento de Pedra Fundamental de Igrejas, de escolas, festas magníficas de casamento, carregadas de tradições. Tanto que quando a menina era confirmada (1a. comunhão) ganhava um terneiro que devia cuidar, para o churrasco do casamento. Se demorasse a casar, ia trocando e fazendo render. 

Foi em novembro de 1985 que viemos para Campo Bom, com nossas quatro filhas. Hoje, meu diário são anotações da família, acontecimentos na vida das filhas, dos netos, e também da realidade em que estamos inseridos. Por 57 anos tenho escrito tanta coisa, que não tenho coragem de reler, pois parece que a saudade vai se materializar. Mas nunca pensei em deixar de escrever.

Caro Luis Augusto, tenho a impressão de que me perdi nessas lembranças. Vou deixar a seu critério. Quem sabe sai um texto aproveitável?

Um abraço,
Enoi.

P.S.: Amanhã mandarei algumas fotos.

Em setembro de 1982, uma das lembranças preferidas de Enoi: a filha Elise como “uma borboleta” sobre a bicicleta.
Na foto, de 1981, festa de Páscoa da Escola Estadual Dr. Carlos Mesko no Iguatemi, interior de Canguçu.

***



Lolita Beretta nasceu em 1985, em Porto Alegre. Desde 2015, vive em São Paulo, onde trabalha com conteúdo e produção cultural. Colabora como editora-assistente na Parêntese e, assim como Enoi, gosta de escrever e tem sempre um diário à mão. Seu primeiro livro sairá em breve pela editora Quelônio (SP).

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