Nossos Mortos | Parêntese

Luís Augusto Fischer: Centenário sem glória

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Luís Augusto Fischer: Centenário sem glória Semana passada, o suplemento cultural Ñ, do jornal Clarín, de Buenos Aires, trazia uma matéria relativamente longa sobre o centenário de um escritor brasileiro muito famoso por lá. Era José Mauro de Vasconcelos. Nascido em 26 de fevereiro de 1920 no Rio de Janeiro, teve uma trajetória bastante atribulada – ele pertence àquele tempo em que os escritores tinham biografia pública, digamos: participavam de lutas sociais, empobreciam ou enriqueciam, fugiam da polícia, entravam para a política, tudo isso junto ou separado.  O redator portenho, atento ao fato de que o livro ainda é lido nas escolas de seu país, salientou que José Mauro era descendente de indígenas pelo lado materno, e só esse dado já dá o que pensar no Brasil de hoje, em que pela primeira vez indígenas autoafirmados se apresentam como autores de literatura. José Mauro viveu em Natal, RN, criado por tios. Passou dificuldades grandes. Entrou no curso de Medicina, que abandonou no segundo ano. Desceu para o Rio, trabalhou numa fazenda no interior, lutou boxe, foi modelo (e talvez garoto de programa). Foi para São Paulo, onde foi de tudo mais uma vez.  Fez o que hoje se chama de mochilão pela Europa e na volta se juntou aos irmãos Villas-Boas no Araguaia, trabalhando junto a indígenas. E lá pelas tantas se descobriu escritor. Seu livro mais famoso saiu em 68 – ano em que o mundo urbano fervia de modernidade ululante, dedo na cara do conservadorismo, rosnadas para o atraso comportamental. Era Meu pé de laranja-lima. A força desse livro foi arrasadora: virou telenovela de sucesso e filme. Na história, um menino de 6 anos vive as durezas da pobreza daqueles tempos anteriores à televisão, num local interiorano, com uma penca de irmãos, um pai desempregado e uma mãe trabalhadora. O livro é doce, compassivo, emocional. Era o tempo em que o mundo rural tradicional ruía. De lá saía quem podia em busca da cidade. Foi quando virou a distribuição da população: nos anos 70, mais gente passou a viver nas cidades do que no mundo rural e nas vilas. E a cidade não tinha árvores para funcionarem como amigos imaginários (aliás, nem este termo existia ainda: ele deve ser coisa da psicologia posterior, escolar, da tia do SOE), mas tinha escola melhor, luz elétrica, água encanada e, mais que tudo, emprego. 68 foi também o ano em que os velhos, os nascidos antes da Segunda Guerra, assistiam apavorados às mudanças, à televisão tornada onipresente, à calça que desbotava e tinha como mérito perder o vinco, aos novos materiais (a fórmica, a matéria plástica). A conquista do espaço, o rock-n-roll, a canção de protesto. Os jovens urbanos tiravam sarro de Zezé e dos leitores – no Pasquim, o livro era motivo de chacota. Entre os velhos assumidos e melancólicos estava Nelson Rodrigues, um cronista reacionário genial, exemplar da sensibilidade acerca desse choque.   Não sei se esta fila de traços ajudará o leitor a se colocar para ler os três lindos depoimentos que vêm a […]

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Semana passada, o suplemento cultural Ñ, do jornal Clarín, de Buenos Aires, trazia uma matéria relativamente longa sobre o centenário de um escritor brasileiro muito famoso por lá. Era José Mauro de Vasconcelos. Nascido em 26 de fevereiro de 1920 no Rio de Janeiro, teve uma trajetória bastante atribulada – ele pertence àquele tempo em que os escritores tinham biografia pública, digamos: participavam de lutas sociais, empobreciam ou enriqueciam, fugiam da polícia, entravam para a política, tudo isso junto ou separado.  O redator portenho, atento ao fato de que o livro ainda é lido nas escolas de seu país, salientou que José Mauro era descendente de indígenas pelo lado materno, e só esse dado já dá o que pensar no Brasil de hoje, em que pela primeira vez indígenas autoafirmados se apresentam como autores de literatura. José Mauro viveu em Natal, RN, criado por tios. Passou dificuldades grandes. Entrou no curso de Medicina, que abandonou no segundo ano. Desceu para o Rio, trabalhou numa fazenda no interior, lutou boxe, foi modelo (e talvez garoto de programa). Foi para São Paulo, onde foi de tudo mais uma vez.  Fez o que hoje se chama de mochilão pela Europa e na volta se juntou aos irmãos Villas-Boas no Araguaia, trabalhando junto a indígenas. E lá pelas tantas se descobriu escritor. Seu livro mais famoso saiu em 68 – ano em que o mundo urbano fervia de modernidade ululante, dedo na cara do conservadorismo, rosnadas para o atraso comportamental. Era Meu pé de laranja-lima. A força desse livro foi arrasadora: virou telenovela de sucesso e filme. Na história, um menino de 6 anos vive as durezas da pobreza daqueles tempos anteriores à televisão, num local interiorano, com uma penca de irmãos, um pai desempregado e uma mãe trabalhadora. O livro é doce, compassivo, emocional. Era o tempo em que o mundo rural tradicional ruía. De lá saía quem podia em busca da cidade. Foi quando virou a distribuição da população: nos anos 70, mais gente passou a viver nas cidades do que no mundo rural e nas vilas. E a cidade não tinha árvores para funcionarem como amigos imaginários (aliás, nem este termo existia ainda: ele deve ser coisa da psicologia posterior, escolar, da tia do SOE), mas tinha escola melhor, luz elétrica, água encanada e, mais que tudo, emprego. 68 foi também o ano em que os velhos, os nascidos antes da Segunda Guerra, assistiam apavorados às mudanças, à televisão tornada onipresente, à calça que desbotava e tinha como mérito perder o vinco, aos novos materiais (a fórmica, a matéria plástica). A conquista do espaço, o rock-n-roll, a canção de protesto. Os jovens urbanos tiravam sarro de Zezé e dos leitores – no Pasquim, o livro era motivo de chacota. Entre os velhos assumidos e melancólicos estava Nelson Rodrigues, um cronista reacionário genial, exemplar da sensibilidade acerca desse choque.   Não sei se esta fila de traços ajudará o leitor a se colocar para ler os três lindos depoimentos que vêm a […]

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