Ensaio | Parêntese

Luiz Mauricio Azevedo: O mundo como vontade e decepção

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Luiz Mauricio Azevedo: O mundo como vontade e decepção

Na casa em que eu cresci tinha televisão. Toshiba. Vinte polegadas, caixa de madeira, seletor em metal. No fim de semana ela ficava ligada o dia inteiro. Dia de semana, havia o jornal Nacional e a novela das oito. Depois, sumiço. Não me lembro de nada digno de nota nos dias de semana. Com exceção da morte da minha mãe – ocorrida em uma terça-feira – minhas memórias de infância são todas de fins de semana. Ainda não decidi que tipo de significado quero atribuir a esse vazio. Por isso, sigo. Aos sábados dava até para escolher: o Bolinha na Bandeirantes ou o Chacrinha na Globo. Nos domingos a tela diminuía: considerando a missa obrigatória, os campeonatos de futebol de botão e a função de jogar três dentro e três fora, só sobrava tempo para os Trapalhões. O meu esquete predileto era um em que o Didi colocava um monte de coisas aleatórias no forno e no fim saía de lá um bolo ornamentoso, com pasta americana bem aplicada e velas de aniversário já acesas. Por mais relapso que fosse o cozinheiro – e ele era – no fim tudo dava certo, contrariando de forma luminosa as expectativas. O processo não importava. A receita culinária era uma prescrição boba, cuja desobediência gestava o riso. Era o triunfo da malandragem e eu delirava no sofá capitonê. 

Mais tarde soube que Mussum e Didi se provocavam mutuamente nos bastidores. O primeiro enchia o camarim do segundo com rapaduras. O segundo, por sua vez, respondia entupindo o camarim do primeiro com bananas. E tudo aquilo não apenas perdeu a graça, como também acabou virando um alerta imaginário sobre a necessidade de se rejeitar qualquer coisa que cheire a uma tentativa de romantização do passado. O Brasil é sempre um projeto novo, construído às pressas em cima de muitos rascunhos cujos traços atrapalham a identificação correta do croqui. Acho que foi Jack Bauer (ou talvez tenha sido David Palmer, não me recordo ao certo) quem disse: “Quando era menino, sentia e falava como um menino. Quando virei adulto, deixei para trás as coisas de menino”. Serve para mim. E serve para o Brasil. Crescer é deixar para trás a sensação de que o que não vemos não existe. E que há alguma relação entre o modo como as coisas são e o modo como necessitamos que elas sejam. O pensamento mágico é o playground da infância. 

Estou pensando nessas coisas enquanto a Vera Magalhães anuncia o fim do banho cognitivo que Silvio Almeida ofereceu a todos que assistiram ao do Roda Viva. Do mundo dos Trapalhões ao Roda Viva muita coisa mudou. A palavra imediata poderia ser progresso. Mas eu não gosto dela. Na minha escola não se usa esse termo. Penso em repercussão histórica. Grande parte das pessoas que eu conheço gostaria que fosse possível viver eternamente com dez anos de idade. Os boletos são apontados como a causa principal desse escapismo palerma, desse desejo de retorno ao mundo das vontades e das bolinhas de gude. Durante muito tempo imaginei que isso não geraria nada além de filmes com o Adam Sandler (exceto Reign over me & Uncut Gems, que são filmes belíssimos e quase estragam a eloquência audiovisual do meu exemplo). Agora, contudo, vejo que a vontade de retornar à infância foi recalcada e apareceu de forma patológica no comportamento de consumo de bens culturais do indivíduo-médio brasileiro. Se não posso voltar à infância, posso ao menos rejeitar aquilo que me parece o elemento mais revelador de seu desaparecimento: o boleto. A partir daí inicio uma escalada em busca do lugar onde sirvam almoço grátis. Toda minha vida se torna uma incessante busca por uma existência sem o boleto. Não me importo em trabalhar. Eu só não desejo pagar. Como, infelizmente, as mercadorias brutas rejeitam meu truque, reservo ao mundo da cultura  o espetáculo de minha rejeição raivosa ao valor. Não aceito pagar o acesso ao jornal (“Eles apoiaram o golpe”). Não aceito pagar pela música (“Esse valor acabaria nem chegando ao músico, mesmo”). Não aceito pagar pelas peças de teatro (“Quarenta reais é muita coisa para ver alguém fingir que é o Hamlet”). Não aceito pagar pelos livros (“As editoras exploram os autores… tem que quebrar esse sistema. Baixo tudo em PDF. ”). 

E desse jeito vou construindo o deserto da minha aniquilação cultural. Tal qual a criança sentada no sofá, espero que todas as decisões equivocadas redundem em um resultado perfeito: um sistema de circulação de bens culturais que me represente e que me preencha. 

Do outro lado, na produção, grande parte dos autores opta por uma operação de caráter estético esquizofrênico. Eles são severos guardiões da independência da forma. Entretanto,  dependem totalmente do circuito de financiamento e circulação das obras. O resultado é um artista infantilizado condenado a produzir para um público infantil, que acredita que é possível produzir livros de trezentas páginas por R$ 9.99. E ainda assim remunerar corretamente todos os profissionais que transformam arte em artefato. 

Por isso, a morte da literatura não é para mim, não é enfim, nenhum mistério. Eu não sou adorniano (cada um com sua ilusão) mas gosto de pensar na existência de um sistema cultural que se traveste de indústria para dar uma aparência de acerto às suas decisões. O desejo latente dos consumidores de cultura alternativa talvez seja ver todas as iniciativas independentes se renderem às grandes narrativas, para que assim se possa finalmente apagar a evidência de nossas próprias contradições. Acho que a maior parte de nós está simplesmente cansada de fingir que quer os melhores livros, os melhores filmes e as melhores instalações. Deixemos, pois, que descansem. Não será a única derrota em nossa trajetória de miséria material, desnutrição intelectual e voluntarismo bipolar. É da vida. 

Quanto ao resto de nós, é hora de acordar. Afinal, o mundo cultural que desejamos não virá de exposições fotográficas financiadas por bancos; tampouco do delírio de que é possível suspender os imperativos econômicos toda vez que a arte se mostrar ameaçada. Há muito a fazer. É preciso politizar nosso consumo. 

O Didi Mocó nunca existiu. E há um motivo para a Terra-do-Nunca não aparecer no GPS. 


Luiz Mauricio Azevedo (Cascavel, PR,1980) é editor na Figura de Linguagem, crítico literário, quarterback frustrado e Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Escreveu oito livros, dentre eles Por uma literatura menos ordinária e A manipulação das ostras. Atualmente é pesquisador pós-doc no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH/USP. Dentre suas paixões irremediáveis estão a poeta Fernanda Bastos e a obra de Ralph Ellison.

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