Memória

Memórias emprestadas: O Jovem Diretor

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Memórias emprestadas: O Jovem Diretor

Telegramas datados de 1938, encontrados nos guardados da minha mãe, contam parte dos acontecimentos das vidas dos meus pais, no fim dos anos 30 e início dos anos 40 do século passado.

Lembranças de fragmentos de casos contados sobre o assunto me vêm à memória. Todavia, eles não são suficientes para compor uma história coerente, e as perguntas se somam. O que estaria acontecendo no estado e no país naquela época? Quem eram os personagens dos telegramas, e por que estariam reunidos? Tive que me valer da memória de dois parentes nonagenários para produzir um quadro familiar dos fatos registrados há oitenta e quatro anos.

A década de 30 foi cheia de acontecimentos turbulentos, muito importantes também na vida de um casal de jovens noivos – meus pais.

No Brasil de 1930, Getúlio Vargas, sob a afirmação que as eleições para presidente haviam sido fraudadas, assumiu o poder com o apoio dos militares, e em 1937 promoveu um golpe de estado, instituindo a ditadura do Estado Novo. Fortemente centralizado e autoritário, de caráter nacionalista e anticomunista, este regime perduraria até 1945. Neste período Getúlio criou a legislação trabalhista, o voto secreto, o voto feminino, e promoveu uma ampla reforma educacional, entre muitas outras mudanças, algumas delas vigentes até hoje. Sua política internacional foi ambígua; ora pendendo para a Alemanha Nazista, ora agradando os Estados Unidos. Entregou Olga Benário grávida para a Gestapo em 1932; e em 1938, permitiu o pouso dos aviões da Força Aérea Americana na Base Aérea de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, e promulgou o Decreto Federal no 406, de 4 de maio de 1938, chamado de Lei dos estrangeiros. 

Este Decreto ficou mais conhecido como a lei da nacionalização. Dentre muitas outras coisas, ele preconizava que as aulas no Brasil deveriam ser ministradas apenas em português; as escolas só poderiam ter nomes nacionais; somente brasileiros natos poderiam ter cargos de direção; e os professores deveriam ser brasileiros natos ou naturalizados e graduados em escolas do país. 

A implementação da nacionalização das escolas comunitárias no Rio Grande do Sul ficou a cargo do então secretário de Educação, Coelho de Souza, signatário de um dos telegramas mencionados, convidando meu pai, Paulo da Costa Gerhardt, para assumir como professor de nacionalização no Colégio Sinodal, de São Leopoldo. Convite no mínimo intrigante para um jovem acadêmico de Direito de 25 anos, e professor de Português e Matemática do Colégio Parobé.

Mas o que eram as escolas comunitárias e qual a razão da necessidade de nacionalizá-las, naquele momento? 

No Rio Grande do Sul, os imigrantes alemães, evangélicos de confissão luterana, haviam criado uma rede de escolas mantidas pelas comunidades para os seus filhos, pois a rede educacional brasileira, reservada às elites, não atendia às suas crianças. Para eles, a alfabetização, leitura e interpretação da Bíblia eram essenciais para a prática da religião luterana, baseada na reflexão sobre os textos bíblicos. Essas escolas tinham todo o ensino em alemão; com o crescimento do nazi-fascismo na Europa, havia o receio que espiões estivessem agindo aqui no Brasil, doutrinando as crianças nas escolas. Por isto, do ponto de vista do governo brasileiro, era urgente a nacionalização e, posteriormente, a proibição dos imigrantes de falar alemão. O mesmo ocorreu com os imigrantes italianos.

O colégio Sinodal (antigo Teuto-Brasileiro) havia sido fundado em 1934, em São Leopoldo, para estabelecer uma ligação entre as escolas comunitárias primárias e secundárias, visando sua oficialização adaptada aos modelos exigidos pelo ensino oficial do estado, e para que seus certificados fossem reconhecidos. Quatro anos depois, em 1938, o Colégio Sinodal foi nacionalizado, com a nomeação de um diretor, Paulo da Costa Gerhardt, meu pai, e professores brasileiros. A partir desta data, Português, História e Geografia do Brasil e Instrução Cívica passaram a ser disciplinas obrigatórias. 

Mas por que foi escolhido um jovem de pouca experiência para assumir tal função? 

Tendo em vista a realidade educacional do país, a tarefa do Secretário deve ter sido muito difícil, uma vez que nesta época a menor parte da população brasileira era alfabetizada. Para que o decreto fosse cumprido, era necessário arregimentar um bom número de professores capazes de assumir as funções nessas escolas, que eram em número de 513 em 1934. No estado, a difícil empreitada ficou a cargo do Secretário de Educação e Saúde Pública, José Pereira Coelho de Souza, que assumiu a secretaria em 1937, lá permanecendo até 1945.

Coelho de Souza desempenhou um papel importante no campo educacional do estado. Alinhado aos ideais positivistas, sua atuação foi eminentemente nacionalista. Além de liderar a nacionalização compulsória das escolas comunitárias particulares, criou diversos grupos escolares, que passaram de 170 em 1937 para 452 em 1941. Instituiu também o primeiro concurso para professores da rede pública estadual, nomeando 1.222 professores de Letras e 59 de Música e Desenho. Neste concurso, minha mãe, Alba de Araújo Vianna, foi aprovada em quarto lugar como professora de Música, sendo nomeada em agosto do mesmo ano: um mês antes do seu noivo – meu pai -, ser indicado como diretor de nacionalização do Colégio Sinodal.

No ano de 1938, temos então uma professora de música recém-nomeada, noiva de um estudante de Direito, indicado para diretor de nacionalização de um colégio, na zona metropolitana da capital. Quem eram estes jovens?

O jovem indicado, meu futuro pai, Paulo da Costa Gerhardt, foi um guri rebelde de Montenegro. Fugia dos colégios até que meu avô, Jorge Gerhardt – filho de prussiano –, o matriculou no Colégio Militar de Porto Alegre, para ver se o menino tomava jeito. Para isto, Jorge, escrivão do cartório de Montenegro, alterou a certidão de nascimento do filho, tornando-o um ano mais moço. O menino, após algumas peripécias, como a fuga de trem com a tropa de oficiais para o Rio de Janeiro, aos 16 anos, para lutar na revolução de 30, tomou tento e concluiu o curso. A sólida formação adquirida no Colégio Militar permitiu que ele se tornasse professor de matemática e português do Colégio Parobé, e logo em seguida estudante de direito da UFRGS (então Universidade de Porto Alegre) e revisor eventual da Editora Globo. Aos 25 anos, fazia de tudo para se firmar na vida, casar e constituir família.

Minha mãe, Alba de Araújo Vianna, era a mais velha de quatro irmãos. Minha avó, Diva Barros de Araújo Vianna, precocemente viúva, criava os quatro com dificuldade – costurando e vendendo pães caseiros. A filha mais velha, então com 22 anos, recém-formada pelo Instituto de Belas Artes da Universidade, e recém-nomeada professora do estado, também dava aulas particulares de piano para ajudar no orçamento familiar.

Os dois se viram pela primeira vez na rua da Praia. Ela descia do Instituto de Belas Artes para pegar o bonde na praça Quinze e ele estava parado em frente à Casa Masson, usando uma capa preta, conforme relatava minha mãe. O namoro propriamente dito iniciou numa quermesse da igreja São Pedro. A partir daí, ele começou a frequentar a casa dela, na rua Gaspar Martins, no bairro Floresta, onde ela morava com a família.

O telegrama que segue ao convite é no mínimo intrigante. Nele meu pai pede à noiva que interceda junto ao Secretário de Educação para que o salário oferecido, de 470$000 (quatrocentos e setenta mil-réis), fosse aumentado. Mas que influência poderia ter tido uma professora, concursada do estado e nomeada um mês antes, junto ao Secretário de Educação? 

Ela era prima de Décio Martins Costa, médico e político, muito amigo de Coelho de Souza. Assim, a nomeação do jovem diretor provavelmente foi engendrada por meio desta rede de parentesco e amizade.

Um terceiro fonograma é de um amigo de toda a vida do meu pai, Telmo Azambuja, rogando que ele aceitasse o emprego, com o salário oferecido. 

Desconheço como ficaram as tratativas quanto ao salário, apenas sei que ele aceitou o encargo, se tornando de fato o diretor de nacionalização do Colégio Sinodal de São Leopoldo.

Também não tenho informações sobre o desempenho do meu pai na função. Lembro-me de comentários do pai e da mãe sobre a dureza daqueles tempos, quando minha mãe acordava de madrugada para chegar na hora da aula no grupo escolar Passo da Capivara, situado no bairro Nonoai, então no meio do mato e da lama. Do meu pai contando que teve que trancar a matrícula na universidade por um ano, para dar conta de todos os compromissos assumidos. Lembro também de ouvir sobre a dificuldade que ele teve para romper a resistência da comunidade luterana em aceitar o jovem diretor e aplicar as novas regras, ditadas pelo decreto.

No fim, acredito que ele deva ter se desempenhado a contento, como testemunha o quarto telegrama, de felicitações pelo casamento do jovem casal, datado de 16 de setembro de 1942, assinado pelo Secretário de Educação Coelho de Souza. 

Junho de 2022


Zara Gerhardt é geóloga aposentada. Autora de dois livros sobre as memórias de sua vida profissional, “Causos do Brasil profundo” (Class, 2019) e “Mais causos do Brasil profundo” (Class, 2022).

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