Memória

O medo dos outros

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O medo dos outros

Em meio à conversa, sinto os olhos revirarem e a cabeça cair para o lado. O braço se retorce, caio no chão e começo a fazer movimentos automáticos de mastigação. Sinto os dentes encostando na língua, a saliva começa a escorrer pelo canto da boca. Ouço alguém por perto comentar “ele está tendo uma convulsão”, mas minha consciência agora não está em lugar nenhum enquanto meu corpo todo se retorce sem controle. Então me apago, como se tivesse sido desligado de uma tomada de energia elétrica que, até há pouco, me dava choques. Passados alguns minutos, começo a recobrar a consciência, mas tudo ainda é muito confuso, como se o mundo houvesse parado naqueles minutos. Não é pausa, porque a vida não recomeça do ponto em que havia parado antes da crise. Também não é como se perder numa conversa e depois simplesmente voltar a ela dizendo ao meu ouvinte: “Desculpe, me perdi! Sobre qual assunto estávamos falando?”. Eu me dou conta de que estou deitado numa espécie de cama improvisada pelas pessoas que estavam por perto e presenciaram tudo. Consigo, aos poucos, relembrar parcialmente o que aconteceu no início da crise, mas o que veio depois não deixou nenhum registro na memória. Sei, no entanto, que vivi aqueles minutos porque sinto a língua toda mastigada, como se ela tivesse sido esburacada por um batedor de carnes. Alguém comenta que eu murmurei coisas que pareciam desconexas, sem sentido. Querem saber se estou bem, se estou sentindo alguma coisa, se quero beber água, se eu sei quem elas são, qual o nome delas, se eu sei onde estou e onde moro. E eu estou ainda tentando entender aquilo tudo, quando então fica evidente: tive outra convulsão. Passa mais um tempo e me fazem as mesmas perguntas, agora já consigo responder, todo urinado, envergonhado, ainda confuso, me sentindo um tanto ridículo, desanimado, derrotado. Agora sinto cansaço e muita sonolência, acabo dormindo um sono profundo novamente.

Em qualquer lugar que eu fosse, a epilepsia nunca me abandonava, mesmo quando não se manifestava. Ela me obrigava a construir e automatizar um repertório de autoproteção para o caso das crises aparecerem, o que podia acontecer a qualquer momento, tanto em casa quanto na rua. Eu temia ser notado durante uma crise de ausência, porque me sentia envergonhado, inseguro e com medo do que as pessoas pudessem fazer. Certa vez, voltando para casa, quando o ônibus encostou na parada senti a aura, o aviso de que a crise de ausência iria começar. A fila de passageiros na calçada andava em direção à porta de entrada do ônibus, mas eu continuava parado. Atrás de mim, um rapaz percebeu que eu não acompanhava o restante da fila que se movimentava. Depois de algum tempo, me cutucou no ombro: “Tudo bem contigo?” Tentei disfarçar e respondi qualquer coisa, ainda parado no mesmo lugar da calçada, confuso. Percebendo que as outras pessoas estavam entrando no ônibus, imitei o movimento delas e fui andando, ainda com a consciência alterada e muito atrapalhado. Já dentro do ônibus, a ausência foi passando, e o rapaz se aproximou e perguntou novamente: “Estás te sentindo bem? Vi que tu paraste ali.” Desorientado, dei a primeira resposta pronta que me veio à cabeça para me desvencilhar das perguntas. Nestas situações, minha reação instintiva era evitar que percebessem qualquer anormalidade em mim e que chamassem outras pessoas para ajudar e dar palpites, me deixando à mercê da curiosidade alheia.

[Continua...]

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