Memória

Segundo tempo

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Segundo tempo

Início da década de 90 o país passava por um processo de transição política, saindo de tempos nebulosos e mortíferos de ditadura militar e entrando numa era democrática, mas com um baita confisco nas contas bancárias, via decreto do então presidente Fernando Collor, que logo adiante não completaria sua gestão, passando por um processo de impeachment. E eu ali, alheio a quase tudo, pero no mucho, observando e sentido na pele, no osso, na alma, os acontecimentos que me afetavam diretamente.


Os anos de 1990 e 1991 se seguiram num misto de esperança em um dia ser jogador de futebol profissional, desestabilização emocional nos quatro cantos da arena familiar, muito bullying e briga na escola, proporcional ao meu desinteresse, e as peladas nos campos de sempre nos campos e quadras da cidade. Na escolinha iam revezando treinadores como Flávio Minuano, Dorinho e o lendário descobridor de talentos, Abílio dos Reis.


Abílio tinha uma fama e um respeito extraordinário no clube. Veio da várzea, treinou o Renner (time porto-alegrense campeão gaúcho de 1954), e era tido descobridor, por vezes lapidador de Carpegiani, Claudiomiro, Falcão, Mauro Galvão, Dunga, Argel, Caíco, entre outros tantos. Os dois últimos inclusive vi sendo instruídos com meus próprios olhos no dia a dia do clube. Ver uma criatura dessas era como ver uma considerável parte da história do futebol gaúcho, e também seu folclore. Tipo assim: se aos meus olhos meu pai já era uma espécie de Noé, Abílio era como Matusalém, avô de Noé. E vi in loco muita coisa que eu escutava nos papos de futebol dos mais antigos. Ele testava a gurizada com ações peculiares. Quase um psicotécnico. Dava valor aos jogadores esforçados, mas com “inteligência“ pros raciocínios lógicos da bola. Falava: “– Cabeceia!” E jogava a bola rasteira. Se o jogador metesse a cabeça ele já desconfiava. E infelizmente aquele pretenso jogador iria ser limado, escanteado, pelo menos por algum período, a não ser que se esforçasse pra aprender fundamentos da bola.


Também era de praxe ele já nem dar muita atenção quando alguém lhe dizia que jogava em qualquer posição. Eram medidas pra filtrar uma pá de gurizada querendo um lugar ao sol no meio futebolístico. Isso acontecia mais nas peneiras, claro. Nas escolinhas, e nos times mais de base mesmo, com jogadores já selecionados a partir do Infantil e Juvenil, onde disputavam torneios, e iam sendo preparados para o Juniores e depois profissional, ele não só dava dicas, por vezes treinava, mas também dava uma até de psicólogo.


Foi o Abílio que, lá pelas tantas, talvez por essas análises técnicas e intuitivas, certa feita me colocou pra jogar de centromédio. Eu jogava na ponta direita. Acho que era muito pelo fato de jogar muitas peladas onde tinha uma variedade etária grande, e geralmente os menores jogavam no ataque. Os maiores na defesa e no meio, mandando a piazada pra frente. E como a maioria queria fazer gol, instintivamente eu caía pra ponta, e muitas vezes recebia a bola durante o jogo. Não à toa nos campinhos de várzea cresce mais grama nas laterais do campo. Porque todo mundo se aglomera, ou tende a explorar o meio de campo. E os pontas geralmente ficavam livres pra receber a bola, partir pra cima do adversário, driblar e entrar na área, ou jogada manjada de linha fundo, e cruzar pra área. Fazia muito esse treinamento no início. Pois eu me prontifiquei a jogar de ponta, e ao longo dos treinos os técnicos separavam as posições para treinamentos específicos.

Mas, tão logo o Abílio me colocou de centromédio, já tive de virar a chave pra outro tipo de pensar técnico. Agora meu tino tinha de estar voltado à marcação do adversário e, sobretudo, à ponte entre os zagueiros, os laterais e os armadores. Eventualmente indo ao ataque, essencialmente ligado a saída de bola e a marcação, e por vezes articulando um contra-ataque. O que hoje seria o primeiro volante, por assim dizer. Mas era um outro pensar tático, com posições mais definidas. Hoje em dia tem uma tendência e uma necessidade de rodízio e polivalência muito maior.


Essa troca de posição me gerou um conflito nas peladas da vida fora da escolinha. Quando eu jogava com os mais velhos, me mandavam jogar na frente. Eu ainda não tinha envergadura física e moral pra me impor como centromédio ou jogar pelo meio. Quando eu jogava com o pessoal da minha faixa etária, daí sim eu ficava no meio. Seja futebol 11 ou 7. Futebol de Salão é outro papo, outra dinâmica. Jogava muito também. Mas eram outras posições, outro tipo de bola, pesadíssima na época, principalmente pra gurizada, outro tipo de tênis, enfim, uma correria só. Mas quem jogava o que hoje entendemos por futsal, pegava muitos trejeitos de drible curto e passe mais caprichado, o que eventualmente se notava no campo de futebol 11.


Fui me adaptando. No fundo, pra mim, era o mesmo princípio pra tudo. Jogar um esporte coletivo com regras específicas, fazer boas jogadas pra resultar em gol, desarmar o adversário, e aprimorar fundamentos como passe, domínio de bola, chute, noção de tempo da bola, de espaço, posicionamento, enfim, tudo que, instintivamente, quando se joga e se vê muito futebol acabamos por exercitar de uma forma ou de outra. As categorias de base de um clube exercem muito mais a função de instruir e lapidar do que ensinar propriamente dito.
Sabe aquele dilema que hoje em dia está mais forte na esfera docente e familiar? Ensinar e educar. Quais as competências de cada um, em relação, por exemplo, à família, à escola e, no caso, um sistema esportivo direcionado ao futebol? Esse conflito foi determinante para o andar da carruagem, especialmente no meu último ano nas categorias de base do Inter, em 1992.


Oly Jr. é cantautor, atuante na cena musical desde 1998. Tem 13 discos lançados até o momento e quatro Prêmios Açorianos de Música (2010 e 2012). Participou de festivais nacionais e internacionais de blues, em coletâneas musicais do gênero; funde milonga com blues, pitadas de capoeira, explorador da técnica do slide, se apresenta ao estilo “one man band”, tocando uma mala de bumbo, gaita de beiço, pandeirola e viola. Reconhecido como um dos mais atuantes e originais da cena blues do Brasil.

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