Memória

Você não percebeu, mas teve uma convulsão

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Você não percebeu, mas teve uma convulsão

De repente, abro os olhos e recebo a sentença: “Você teve uma convulsão, e foi bem forte”. É o primeiro sinal de que a minha conexão com o mundo, depois de um apagão mental, está voltando aos poucos. No primeiro momento, não entendo nada do que está acontecendo. Aos poucos, me dou conta de que estou na minha cama, rodeado por gente da família e do pronto-socorro. O médico socorrista, então, percebendo que já estou recobrando a consciência, repete: “Você teve uma crise”. Eu não lembro nada, minha cabeça dói muito, mas o anúncio, o de que acabei de ter uma crise epilética, cai como uma bomba, mais uma derrota. Neste momento, sinto cheiro de urina e me dou conta que estou todo molhado da cintura pra baixo, a cama alagada. Os esfíncteres, durante as crises epiléticas, quase sempre se descontrolam. Aliás, tudo é descontrole durante uma convulsão. Então, ao sentimento de derrota se somam os de vergonha, constrangimento, impotência, vontade de não estar ali. Quando peço aos que estão em volta da minha cama que me esclareçam, afinal, o que aconteceu, percebo que a minha língua está toda cortada, deve ter sido mastigada enquanto a boca salivava e se retorcia, na convulsão, junto com o resto do corpo.

Até os meus 32 anos de idade, esta cena, com algumas variações de cenário e intensidade, se repetiu várias vezes. Não foram poucas as vezes em que desanimei pela falta de chances de cura da epilepsia, época em que os neurologistas tentavam o controle das minhas crises, ainda sem a perspectiva de neurocirurgia. Numa das tantas consultas com o médico que me tratava no período em que eu iniciava minha vida universitária, lembro de ter desabado emocionalmente e chorado muito ao falar com ele sobre as crises e a minha desesperança de um dia ao menos conseguir ter uma vida mais normal, sem tantas limitações. O médico, de forma comovente e gentil, tentou me consolar. Os efeitos colaterais dos remédios anticonvulsivantes podiam incluir tremedeiras nas mãos, transtornos de humor, dificuldades para estudar e ler devido à sonolência e até falar meio enrolado parecendo estar bêbado. Queria conversar e me relacionar com as pessoas sem medo de ter crises, mas tudo parecia impossível e muito frustrante.

Um médico que fez toda a diferença

Foi apenas em 1988, com o início do tratamento com um novo neurologista, Frederico Kliemann, que novas perspectivas se abriram. Recém-retornado a Porto Alegre após um período de trabalho em Londres, o Kliemann me recebeu no consultório dele para uma consulta. Já na primeira conversa, notei um médico interessado, que me ouvia com atenção e era capaz até de desenhar pacientemente as coisas mais complicadas para ser melhor entendido. Era um cara que me encantava pelo conhecimento científico profundo que tinha e pelo viés humanista com que lidava com os dramas dos pacientes. Com ele, as coisas que eu relatava pareciam fazer algum sentido. Era como se ele interpretasse, à luz da ciência, aquilo que para mim era uma sensação confusa de estranhamento. Assim, ele me explicou, por exemplo, que a claridade e as cores intensas que eu enxergava durante as crises não estavam nas coisas que eu via, mas eram sensações produzidas pelo meu cérebro. E isso, os relatos e as inquietações do paciente serem levados em conta pelo médico, pode fazer toda a diferença quando se está fragilizado ou querendo um novo caminho para enfrentar a doença.

[Continua...]

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