Crônica | Parêntese

Nathallia Protazio: Aniversário

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Nathallia Protazio: Aniversário Essa semana completei um ano como porto-alegrense. Lembro de um dia qualquer de agosto do ano passado — falando no telefone com minha mãe, enquanto subia a Floriano Peixoto na altura dos antiquários, eu contava como estava me sentindo. ‘‘Estranha por quê?’’ ‘‘Não tenho certeza. Acho que depois de um semestre, minha lista de coisas pra reconstruir a vida pós-divórcio acabou e não sei o que fazer.’’ Já tinha onde morar e trabalhar, as bases da vida adulta. Estava mais uma vez me sentindo perdida. Então, minha mãe, com a clareza de quem sabe o que faz em cada segundo de sua existência, desdobrou um pequeno suspiro, puxou um silêncio e o quebrou com a única frase que faria sentido naquele dia: ‘‘Agora é só você viver’’. O que é viver? O contrário de viver é morrer? Tudo é tão simples assim? Não acho. Talvez o contrário de viver seja sobreviver. Não digo num sentido agudo de um náufrago, um amputado por mina terrestre ou uma refém de assalto à mão armada. Acredito que a perspectiva de apenas ir sobrevivendo é o que tem impulsionado pessoas acostumadas a viver plenamente, numa manhã de domingo, pularem da varanda no Petrópolis. Quem sabe até o suicídio pode ser um luxo. A morte não é uma saída de emergência quando outros dependem da sua vida. Acredito que nenhum suicida gostaria mesmo de morrer. A vontade é de terminar rápido com uma dor que racionalmente demoraria meses para ser curada. Anos. Morrer foi só um erro no cálculo. Mas o que é viver? Hoje faço trinta anos. A casa está calma e silenciosa nesta manhã fria de maio. Apesar de mais tarde a única pessoa que irá dividir as comemorações comigo ser a companheira de todos os dias de isolamento social, garanto que pelo menos o silêncio a gente vai conseguir quebrar. Mas este ano, como para muitas outras pessoas, a nova idade vai entrar pela porta da frente de máscara e deixando os sapatos sujos na entrada. Com a proibição de aglomerações a celebração da vida, meu ritual preferido no ano vai ser pela tela de uma vídeo-chamada, por mensagens nas redes sociais e pelo som de um telefonema ou um áudio de WhatsApp. Parece que tudo que não estamos podendo viver lá fora tentamos tornar real de alguma forma compartilhada virtualmente com os outros humanos isolados que conhecemos. Viver é isso? Dividir um momento do dia com alguém pela rede social? Bater um bolo e antes de comê-lo fazer um boomerang pra postar no Instagram. Escutar uma música e compartilhá-la no status do Facebook. YouTube, TikTok, Twitter, Snapchat, Spotify, Viber, Pinterest. O universo virtual parece sem limites. A vida que se passa dentro dele tende a seguir a mesma regra. Paquera virtual é traição? Dar like é realmente participar de um momento na vida do outro? Fazer uma foto que durará cinco segundos na tela de outra pessoa torna aquele momento eterno? Tenho a impressão de que quanto mais entro na rede, […]

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Essa semana completei um ano como porto-alegrense. Lembro de um dia qualquer de agosto do ano passado — falando no telefone com minha mãe, enquanto subia a Floriano Peixoto na altura dos antiquários, eu contava como estava me sentindo. ‘‘Estranha por quê?’’ ‘‘Não tenho certeza. Acho que depois de um semestre, minha lista de coisas pra reconstruir a vida pós-divórcio acabou e não sei o que fazer.’’ Já tinha onde morar e trabalhar, as bases da vida adulta. Estava mais uma vez me sentindo perdida. Então, minha mãe, com a clareza de quem sabe o que faz em cada segundo de sua existência, desdobrou um pequeno suspiro, puxou um silêncio e o quebrou com a única frase que faria sentido naquele dia: ‘‘Agora é só você viver’’. O que é viver? O contrário de viver é morrer? Tudo é tão simples assim? Não acho. Talvez o contrário de viver seja sobreviver. Não digo num sentido agudo de um náufrago, um amputado por mina terrestre ou uma refém de assalto à mão armada. Acredito que a perspectiva de apenas ir sobrevivendo é o que tem impulsionado pessoas acostumadas a viver plenamente, numa manhã de domingo, pularem da varanda no Petrópolis. Quem sabe até o suicídio pode ser um luxo. A morte não é uma saída de emergência quando outros dependem da sua vida. Acredito que nenhum suicida gostaria mesmo de morrer. A vontade é de terminar rápido com uma dor que racionalmente demoraria meses para ser curada. Anos. Morrer foi só um erro no cálculo. Mas o que é viver? Hoje faço trinta anos. A casa está calma e silenciosa nesta manhã fria de maio. Apesar de mais tarde a única pessoa que irá dividir as comemorações comigo ser a companheira de todos os dias de isolamento social, garanto que pelo menos o silêncio a gente vai conseguir quebrar. Mas este ano, como para muitas outras pessoas, a nova idade vai entrar pela porta da frente de máscara e deixando os sapatos sujos na entrada. Com a proibição de aglomerações a celebração da vida, meu ritual preferido no ano vai ser pela tela de uma vídeo-chamada, por mensagens nas redes sociais e pelo som de um telefonema ou um áudio de WhatsApp. Parece que tudo que não estamos podendo viver lá fora tentamos tornar real de alguma forma compartilhada virtualmente com os outros humanos isolados que conhecemos. Viver é isso? Dividir um momento do dia com alguém pela rede social? Bater um bolo e antes de comê-lo fazer um boomerang pra postar no Instagram. Escutar uma música e compartilhá-la no status do Facebook. YouTube, TikTok, Twitter, Snapchat, Spotify, Viber, Pinterest. O universo virtual parece sem limites. A vida que se passa dentro dele tende a seguir a mesma regra. Paquera virtual é traição? Dar like é realmente participar de um momento na vida do outro? Fazer uma foto que durará cinco segundos na tela de outra pessoa torna aquele momento eterno? Tenho a impressão de que quanto mais entro na rede, […]

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