Crônica | Parêntese

Nathallia Protazio: Isolamento sexual

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Nathallia Protazio: Isolamento sexual Ontem passei o dia com uma sensação estranha. Era um misto de vontade de chorar com uma incompreensão própria. Não sabia por que queria chorar, e não saber a razão dava mais vontade ainda. Cheguei em casa com necessidade de um filme triste. Procuro na aba ‘‘drama’’ e comprovo que meu referencial de tristeza estava mais exigente que o do Netflix. Tento então buscar na memória algum que fosse melancólico o suficiente. Cinco minutos depois já estávamos assistindo a vida de um cara isolado do mundo. A intenção era chorar, mas não deu. Apareceu uma mulher com o filho autista em cena e encheu a tela da tevê com a carência óbvia do tal cara. Percebi ali que na verdade ele estava vivendo a mesma situação que nós: isolamento sexual. A diferença era que ele estava perdido no meio do nada na Patagônia e nós estávamos dentro de um apartamento na Cidade Baixa. Não preciso dizer que o drama foi pelo ralo e os comentários sobre a beleza física do protagonista ganharam bastante força com o decorrer da trama. Tanto que uma hora no meio dos nossos ‘‘Que homem é esse, minha gente!’’ ‘‘Deusulivre!’’ ‘‘Quê qué isso, minha nossa Senhora da Achiropita!’’, uma de nossas vizinhas-amigas deu um grito pela janela perguntando o que era aquela bagunça. Acho que nos excedemos um pouquinho nos elogios. Mas, fazer o quê, qualquer análise psicológica barata vai defender que quanto menos se tem o que se quer, mais desejamos falar sobre o assunto. Fazemos isso quando crianças e queremos um doce ‘‘mãe, mãe, mãe’’. Quando adolescentes e descobrimos a paixão, qualquer assunto vira ‘‘ele’’. E quando, enfim, adultas, solteiras, independentes e com a vida sexual em dia – ou quase –, eis que chega uma pandemia. É… A quarentena não está fácil pra ninguém, colegas. Temos pais enlouquecendo com as crias dentro de casa tendo que se dividir entre home office e panela de feijão, fazendo de um tudo pra manter a família viva. Temos toda a população em situação de rua que não têm casa pra lhes proteger do contágio, nem mesmo água pra lavar as mãos ou políticos que lhes enxerguem. Temos a galera dos trabalhos informais se arriscando, como os entregadores de comida por aplicativo e os trabalhadores dos ‘‘serviços essenciais’’ tentando manter a sanidade mental enquanto se adaptam a todo tipo de pergunta idiota se concentrando pra não coçar o nariz sob a máscara. Mas hoje eu venho desabafar em nome de uma classe pouco representada ultimamente nessa enxurrada de memes e post de pão, crianças e séries: as solteiras em quarentena. Para isto gostaria que vocês conhecessem Amélia. Ela é uma amiga como todas as outras que tenho: incrível. Contudo, tem passado por todas as etapas do isolamento supracitado. No início da quarentena, como muita gente, ela também não botou fé na longevidade do pacote de recomendações, algumas vezes paradoxais, que todos recebemos pelos meios de comunicação. Como podia se dar ao luxo, se trancafiou em seu apartamento. […]

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Ontem passei o dia com uma sensação estranha. Era um misto de vontade de chorar com uma incompreensão própria. Não sabia por que queria chorar, e não saber a razão dava mais vontade ainda. Cheguei em casa com necessidade de um filme triste. Procuro na aba ‘‘drama’’ e comprovo que meu referencial de tristeza estava mais exigente que o do Netflix. Tento então buscar na memória algum que fosse melancólico o suficiente. Cinco minutos depois já estávamos assistindo a vida de um cara isolado do mundo. A intenção era chorar, mas não deu. Apareceu uma mulher com o filho autista em cena e encheu a tela da tevê com a carência óbvia do tal cara. Percebi ali que na verdade ele estava vivendo a mesma situação que nós: isolamento sexual. A diferença era que ele estava perdido no meio do nada na Patagônia e nós estávamos dentro de um apartamento na Cidade Baixa. Não preciso dizer que o drama foi pelo ralo e os comentários sobre a beleza física do protagonista ganharam bastante força com o decorrer da trama. Tanto que uma hora no meio dos nossos ‘‘Que homem é esse, minha gente!’’ ‘‘Deusulivre!’’ ‘‘Quê qué isso, minha nossa Senhora da Achiropita!’’, uma de nossas vizinhas-amigas deu um grito pela janela perguntando o que era aquela bagunça. Acho que nos excedemos um pouquinho nos elogios. Mas, fazer o quê, qualquer análise psicológica barata vai defender que quanto menos se tem o que se quer, mais desejamos falar sobre o assunto. Fazemos isso quando crianças e queremos um doce ‘‘mãe, mãe, mãe’’. Quando adolescentes e descobrimos a paixão, qualquer assunto vira ‘‘ele’’. E quando, enfim, adultas, solteiras, independentes e com a vida sexual em dia – ou quase –, eis que chega uma pandemia. É… A quarentena não está fácil pra ninguém, colegas. Temos pais enlouquecendo com as crias dentro de casa tendo que se dividir entre home office e panela de feijão, fazendo de um tudo pra manter a família viva. Temos toda a população em situação de rua que não têm casa pra lhes proteger do contágio, nem mesmo água pra lavar as mãos ou políticos que lhes enxerguem. Temos a galera dos trabalhos informais se arriscando, como os entregadores de comida por aplicativo e os trabalhadores dos ‘‘serviços essenciais’’ tentando manter a sanidade mental enquanto se adaptam a todo tipo de pergunta idiota se concentrando pra não coçar o nariz sob a máscara. Mas hoje eu venho desabafar em nome de uma classe pouco representada ultimamente nessa enxurrada de memes e post de pão, crianças e séries: as solteiras em quarentena. Para isto gostaria que vocês conhecessem Amélia. Ela é uma amiga como todas as outras que tenho: incrível. Contudo, tem passado por todas as etapas do isolamento supracitado. No início da quarentena, como muita gente, ela também não botou fé na longevidade do pacote de recomendações, algumas vezes paradoxais, que todos recebemos pelos meios de comunicação. Como podia se dar ao luxo, se trancafiou em seu apartamento. […]

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