Crônica | Parêntese

Nathallia Protazio: Tempo Perdido ou Quando todas as palavras já foram ditas

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Nathallia Protazio: Tempo Perdido ou Quando todas as palavras já foram ditas Você me diz ‘‘Olhai os lírios do campo’’. Mas eu sou nordestina. Cresci brincando de esconde-esconde nos roçados de mandioca e de milho. Comendo cuscuz com leite no café-da-manhã, e meio-dia, feijão com farinha. Não sei qual é a cor de um lírio. Não chamo a roça de campo. Não olho o mundo. Para olhar é preciso tempo. Não o tenho há muito. Só queria deitar e descansar, mas os pesadelos voltaram esta semana. E o pior não é o cansaço, não, cansada eu estou há meses. O pior é não poder sonhar. O pesadelo ocupa o lugar do sonho e não sobra nada além de uma noite turbulenta, depois de mais um dia cheio de desgraças. Você sabe quais. Não vou ficar enumerando as últimas, não sou repórter de jornal. Pra televisão também não tenho tempo. Preciso correr pra não deixar minha consciência gritar aqui dentro da minha cabeça o que tudo isso quer dizer. O que tudo isso que vocês querem que eu diga quer dizer. O que tudo isso que vocês querem que eu escute quer dizer. Não quero nenhum significado, nenhuma análise, nenhuma tese, hipótese, estatística. Minhas lágrimas não cabem numa planilha do excel. A indignação de uma mãe não pode ser paga em fiança. E eu nem sou mãe. A vida de um jovem não vale a letra de um poema, e eu também não sou poeta. Eu sou só mais uma pessoa cansada. Cansada e sem tempo. Minha mãe alisou meus cabelos e me confundiram com uma menina branca.  Sem saber o que estava acontecendo, eu estudei numa escola particular. Minha pele clara confundiu-os de novo e eu fiz faculdade sem muito alarde. O mundo empurra de um lado, e a gente, crescendo dentro de um ônibus lotado, aprende rápido a ocupar o espaço vazio. O mundo empurra de outro, e a gente se espreme, olhando pro chão, pra não incomodar. Entra mais gente e aquele passinho pro lado é o constrangimento de quem sabe que seria melhor se a gente não estivesse ali. A gente incomodaria menos se tivesse ficado em casa. A gente incomodaria menos ainda se nem existisse. Mas a gente existe. Eu existo. Mas ainda nem sei o que isso significa.  Queria escrever palavras que tocassem as pessoas e nos dessem vontade de sair dançando. Palavras que compreendessem minha mãe, meu irmão, minha amiga. Talvez até você. Queria ser uma árvore. Ter a oportunidade de te fazer sombra. Queria te dar frutos. Frutos suculentos que matassem a fome das crianças. Queria poder chover e das minhas lágrimas nasceriam flores coloridas. Quem sabe até um lírio, cuja cor desconheço. Mas quando choro tudo é ácido. Quando durmo não descanso e ao abrir os olhos o mundo continua correndo pro caos. Não temos deus. O criamos pra poder matá-lo. Só sabemos fazer isso. Matar. A gente só deixa criança nascer pra termos mais uma vez motivo de dizer: ‘‘Olha lá, tentamos e de novo não deu certo’’. Andamos sem tempo porque nos […]

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Você me diz ‘‘Olhai os lírios do campo’’. Mas eu sou nordestina. Cresci brincando de esconde-esconde nos roçados de mandioca e de milho. Comendo cuscuz com leite no café-da-manhã, e meio-dia, feijão com farinha. Não sei qual é a cor de um lírio. Não chamo a roça de campo. Não olho o mundo. Para olhar é preciso tempo. Não o tenho há muito. Só queria deitar e descansar, mas os pesadelos voltaram esta semana. E o pior não é o cansaço, não, cansada eu estou há meses. O pior é não poder sonhar. O pesadelo ocupa o lugar do sonho e não sobra nada além de uma noite turbulenta, depois de mais um dia cheio de desgraças. Você sabe quais. Não vou ficar enumerando as últimas, não sou repórter de jornal. Pra televisão também não tenho tempo. Preciso correr pra não deixar minha consciência gritar aqui dentro da minha cabeça o que tudo isso quer dizer. O que tudo isso que vocês querem que eu diga quer dizer. O que tudo isso que vocês querem que eu escute quer dizer. Não quero nenhum significado, nenhuma análise, nenhuma tese, hipótese, estatística. Minhas lágrimas não cabem numa planilha do excel. A indignação de uma mãe não pode ser paga em fiança. E eu nem sou mãe. A vida de um jovem não vale a letra de um poema, e eu também não sou poeta. Eu sou só mais uma pessoa cansada. Cansada e sem tempo. Minha mãe alisou meus cabelos e me confundiram com uma menina branca.  Sem saber o que estava acontecendo, eu estudei numa escola particular. Minha pele clara confundiu-os de novo e eu fiz faculdade sem muito alarde. O mundo empurra de um lado, e a gente, crescendo dentro de um ônibus lotado, aprende rápido a ocupar o espaço vazio. O mundo empurra de outro, e a gente se espreme, olhando pro chão, pra não incomodar. Entra mais gente e aquele passinho pro lado é o constrangimento de quem sabe que seria melhor se a gente não estivesse ali. A gente incomodaria menos se tivesse ficado em casa. A gente incomodaria menos ainda se nem existisse. Mas a gente existe. Eu existo. Mas ainda nem sei o que isso significa.  Queria escrever palavras que tocassem as pessoas e nos dessem vontade de sair dançando. Palavras que compreendessem minha mãe, meu irmão, minha amiga. Talvez até você. Queria ser uma árvore. Ter a oportunidade de te fazer sombra. Queria te dar frutos. Frutos suculentos que matassem a fome das crianças. Queria poder chover e das minhas lágrimas nasceriam flores coloridas. Quem sabe até um lírio, cuja cor desconheço. Mas quando choro tudo é ácido. Quando durmo não descanso e ao abrir os olhos o mundo continua correndo pro caos. Não temos deus. O criamos pra poder matá-lo. Só sabemos fazer isso. Matar. A gente só deixa criança nascer pra termos mais uma vez motivo de dizer: ‘‘Olha lá, tentamos e de novo não deu certo’’. Andamos sem tempo porque nos […]

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