Há muitos pontos em comum entre Essa gente, de Chico Buarque, lançado às vésperas do Natal de 2019, e Budapeste, seu romance de 2003. E, cá pra nós, não há mal algum nisso. José Saramago inseriu em seu Ensaio sobre a lucidez, de 2004, personagens de seu romance de maior prestígio, Ensaio sobre a cegueira, publicado nove anos antes, numa intertextualidade que extrapola a semelhança dos títulos. Chico não vai tão longe, é vero, mas não seria absurdo se Essa gente se chamasse Rio de Janeiro, num contraponto direto a Budapeste. E haveria razões para isso. O projeto gráfico dos dois livros já nos dá uma pista: capa e contracapa trazem trechos da narrativa, remetendo à atividade profissional dos dois protagonistas. Em Budapeste, temos José Costa, um fabricante de texto por encomenda, um ghost-writer. “Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra”, diz o narrador, julgando-se predestinado a ser uma mancha, um corpo sem face, tal e qual a estátua do Escritor Desconhecido exposta no Parque Városigled em Budapeste, incorporada depois ao filme homônimo de Walter Carvalho. O rosto da estátua não tem traços, é uma mancha escura, uma sombra. Pois sombra é também o protagonista criado por Chico Buarque para Essa Gente. Manoel Duarte é um escritor fracassado, um “anjo decaído” chafurdado na folha em branco e na lembrança de seu único sucesso, o romance Eunuco do Paço Real (atenção, eunuco: “no Oriente, homem castrado que tinha a função de guardar as mulheres do harém; por analogia, indivíduo débil e impotente, física e/ou espiritualmente.”). Ou seja, o criador transformou-se em reflexo de sua cria: é escritor castrado, “o tal escritor”, sem lugar no meio literário e na cidade – “no cafofo do Agenor, me sinto tão deslocado quanto no palácio de Napoleão Mamede”. E Chico? Sergio Rodrigues, na orelha do romance, chama atenção para “alusões autobiográficas”, possíveis semelhanças entre escritor e personagem, a começar pelo “sobrenome de perfil vocálico idêntico” (Buarque/Duarte). Essa e outras “coincidências” (ambos moradores do alto Leblon, por exemplo) indicam o jogo entre ficção e realidade, marcante, aliás, em toda a obra de Chico, desde Estorvo, seu primeiro romance. Os nomes dos personagens já espelham a “temática do duplo”: em Budapeste, José Costa (José, nome comum, e Costa, que remete às costas, verso, como um ghost-writer é); em Essa gente, Manoel Duarte (Manoel, outro nome comum, mais comum ainda em Portugal, por onde a narrativa também circula) e Duarte que, além da afinidade com Buarque, pode ser entendido em sua etimologia: “o guardião das riquezas”. Seria a “riqueza” a escrita, o best-seller que o escritor guarda de troféu, ou a inspiração, a Musa que deu as costas tanto para Costa quanto para Duarte? Nesse caso, seriam José Costa e Manoel Duarte alter-egos de Chico Buarque, que por sua vez evoca tantos duplos, além do próprio nome (duplo) com que se identifica? Se não temos a resposta objetiva – ainda mais quando o autor não fala sobre o livro (no caso de Essa […]