Nossos Mortos

A vez em que a luz perdeu corrida para o mestre Ivo

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A vez em que a luz perdeu corrida para o mestre Ivo Ivo Czamanski e o diretor Rogério Ferrari no set de Vicious (1988). Foto: Fernanda Chemale

Se pensarmos em uma tela preta e um lápis branco, o rabisco extraído de uma gravura a livre mão poderia ter sido um filme em preto e branco, do início do outro século. Se seguirmos nesta analogia, o fotograma escuro do filme é uma tela, pintado pelo branco que vem dos refletores – aquele que primeiro apertou o lápis, pressionou até deixar marcar, estava escrevendo por novas formas. Este era um Diretor de Fotografia, como o foi Ivo Czamanski, que nos deixou recentemente. Através da película sensibilizada pela luz nascia suas histórias – e se forjava um artista da cinematografia, técnico manipulador de sentidos através de artefatos luminosos, condicionados pelo pragmatismo físico e químico do cinema analógico.

Mestre Czamanski foi assim, meio senhor do impossível, meio sorriso de Ivo. Conhecido como “o fotógrafo dos filmes antigos, de Teixeirinha a 7 Provas, A Morte Não Marca Tempo e dos cinejornais da Leopoldis Som, ele resistiu à difícil transposição do analógico para o digital, para uma luz que não é a mesma da película, nem igual para todas as pessoas. Antes, porém, ele fotografou também o curta punk de estreia de Rogerio Ferrari, Vicious, e o seguinte, Paulo e Ana Luiza em Porto Alegre. Foi também diretor do Iecine (Instituto Estadual de Cinema do Rio Grande do Sul) e lutou para manter os equipamentos de cinema antigos expostos no Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, abrindo as portas com generosidade para os jovens interessados em saber um pouco mais sobre como se formava a imagem no mundo analógico.

Foi Ivo quem me mostrou o conceito da Imagem Latente, a materialidade da luz em película, daquilo que foi registrado, mas ainda não existe. Daquilo que é imagem em potência, presa no negativo exposto, esperando nascer no laboratório, no processo de revelação. Este movimento provocador de alterações na materialidade efêmera que a luz cinematográfica compõe acaba instrumentalizando, com o passar dos anos, todo um aparato de opções técnicas e estéticas para a composição da imagem de cinema. Enquanto a luz obedecia aos trajetos dados por ele, Ivo a conduzia a novos sentidos e significações atribuídas nos próximos planos que viriam. Quando o conheci, nos tempos do antigo Iecine, no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre, eu não havia escolhido o que fazer do tempo, quanto mais o que gostaria de ser na vida. Pois ouvindo o Ivo tive minhas primeiras compreensões sobre o cinema e de suas duas telas: aquela em que o diretor de fotografia projeta a imagem (sensor) e a outra, em que a imagem será projetada. Neste tempo a luz corria em velocidade tão grande que eu não sabia a quanto passou, nem tão pouco quando isso aconteceria. Mestre Ivo ria; para ele, desconfio, a luz já se apresentava lentinha.

Depois, aprendendo um pouco mais dos filmes e das vidas, eu tentava ser Diretor de Fotografia. Ainda tento. Já consigo ver a luz dobrar uma esquina, pular sobre um monte, desviar uma janela. Outro dia, juro que vi a luz piscar para o Ivo, em uma total sintonia. Lembro deste set de filmagem em 2007: Um aceno na Garoa, sua primeira aventura cinematográfica de registro digital e posterior kinescopia – um nome feio para falar do processo de transpor a luz do digital para a película, técnica inovadora no laboratório, dificilmente usada hoje. A coragem de Ivo em ser pioneiro também neste novo meio foi o estímulo que lhe faltava em uma vida que escolheu a luz como problema de pesquisa. Fui seu assistente de fotografia neste e em outro curta-metragem, e pude vê-lo mexer as mãos, com o fotômetro em punho, dançando o braço pelo set, ora em movimentos rápidos, ora lentos, em um bailado contínuo. Passava um tempo, voltava, até que saía do local da cena em direção à câmera satisfeito, junto à lente para atribuir as medidas do diafragma. O que ninguém via, e eu somente desconfiava, é que Ivo não media com o fotômetro a intensidade da luz. Ele a amansava. Freava seu impulso, propondo um ritmo e velocidade. Tratava como uma querida, uma amiga, parceira de dança. Não podiam andar nem na frente nem atrás um do outro, mas sempre em sincronia.

São raras as pessoas que passam a vida pensando na luz, arquitetando o seu desenho, seduzindo sua presença, até que um dia acorde como ela mesma – e, chegando a ser luz, podem voltar aos sets em revisita, com saudade de contar novas histórias, auxiliando colegas de fotografia. Alguns veem a luz passar, outros passeiam com ela de mãos dadas, até não ver o tempo passar, brincando de pega-pega. Pois chegou o dia em que a luz perdeu corrida para Ivo Czamanski. Ele foi mais rápido – e pela primeira vez é ela que vai para a avant première, sentada na poltrona, olhando na tela o mestre brilhar.

Foto: Rogério Ferrari


Maurício Borges de Medeiros é diretor de fotografia, professor mestre na Unisinos, sócio da produtora Praça de Filmes e membro da ABC – Associação Brasileira de Cinematografia. Colaborou com o texto Milton do Prado, montador, também professor mestre da Unisinos, sócio da Rainer Cine.

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