Nossos Mortos

Arnaldo Campos

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Arnaldo Campos

Um dia, depois da reunião semanal dos coordenadores da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, Arnaldo Campos me passou um envelope com um livro e saiu. Era Como Aprendi a Escrever, de Máximo Górki. Abri e na primeira página estava a dedicatória: “Amigo Juarez, espero que gostes. É a primeira edição brasileira deste Gorkinho que nos ensina tanto”. De fato, um livro de poucas páginas mas cumpridor. Atestava a empatia que havia entre nós, pois Arnaldo, um colecionador de princeps (edições originais), deve ter pensado um pouco antes de se desfazer daquela. Ou encontrara outra e me escolheu para dividir com ele o prazer de tê-la.

Era esse tipo de pessoa generosa e afável. Nos anos de convivência próxima, nunca o vi alterar a voz. O conheci acho que em 1969, eu um jovem curioso que volta e meia entrava na Livraria Coletânea mais para olhar do que para comprar livros – ainda estava na faculdade, grana curta, só para o indispensável. A Coletânea, naquele ponto da rua da Praia em frente à praça da Alfândega, era um lugar meio apertado, estantes altas, oferecendo lançamentos e muitos títulos de interesse para leitores, digamos, mais à esquerda, além de revistas e jornais. Arnaldo e seu sócio, Brutus Gemignani, estavam sempre na parte da frente e tinham clientes fieis; gente como Mario Quintana, que batia o ponto diariamente.

(A propósito, em meu livro Ora Bolas, tem uma historinha que me foi contada por Arnaldo. Ele estava por perto de Quintana e viu uma senhora aproximar-se do poeta, ao reconhecê-lo. 

“Aparentemente sem saber de que forma fazer a melhor abordagem, a senhora identificou-se como professora e foi fundo:

– Poeta, o que devo ler para entender Shakespeare?

Com o dedo indicador preso no meio do livro que estava examinando, Quintana orientou, imperturbável e honestamente:

– Shakespeare, minha filha!”)

Mas naquela época não cheguei a conversar com Arnaldo, além do perguntar por livros e sem me identificar. Isso só ocorreria em 1988, quando o professor Joaquim José Felizardo criou a Secretaria Municipal da Cultura no governo de Alceu Collares e convidou para serem coordenadores Sérgio da Costa Franco (Memória), Arnaldo Campos (Livro e Literatura) e eu (Música e Teatro). Juntamente com outros amigos de Felizardo, como o professor de literatura Sergius Gonzaga, o professor de latim e filosofia Luiz Osvaldo Leite e os historiadores Voltaire Schilling e Décio Freitas, passamos a almoçar juntos às quintas-feiras no Restaurante Copacabana e na Casa de Portugal. Nasce aí (ainda sem esse nome) a confraria Mesa das Quintas, que cresceria e se mantém até hoje, liderada por Leite – que em novembro próximo comemorará 90 anos.

 Então, quando assumiu como coordenador do Livro e Literatura, Arnaldo já era um livreiro e bibliófilo respeitado na cidade, além de romancista e contista, com vários livros lançados. Paralelamente, mantinha um espaço de duas páginas no Jornal do Jockymann, publicando textos inéditos de autores gaúchos. Como sabia ser eu poeta bissexto, graças a um sarau dirigido por Luciano Alabarse no Teatro Renascença, pediu que lhe mostrasse alguns poemas e os publicou naquele espaço. Minha veia poética se esvaziaria logo adiante, conto isto apenas para mostrar um dos lados do caráter agregador de Arnaldo.

No ano e pouco em que estive com Felizardo, primeiro na Divisão de Cultura da SMED e logo na Secretaria da Cultura, mantive minha coluna semanal de música em Zero Hora. Ao fim da gestão Collares/Felizardo, em 1989, retornei à Redação do jornal como editor do caderno ZH Cultura. E uma das primeiras iniciativas foi convidar Arnaldo a fazer uma coluna/crônica semanal que recebeu o nome de “Biblioteca do Tempo”. Escrevendo sobre o livro na história e a história do livro, Arnaldo marcou o espaço. E assim foi até 1992, quando mudanças na Redação levaram à extinção do suplemento cultural. A morte de Felizardo, em 1992, não desfaria o grupo das quintas…

No prefácio de Breve História do Livro, lançado em 1994, Arnaldo lembra: “A boa repercussão da Biblioteca do Tempo acabou por sugerir a ideia de uma obra sobre a história de livro, um tema, no Brasil, de raros especialistas e poucas publicações, mas de crescente interesse entre o público leitor. Daí a elaboração desta Breve História do Livro que me foi proposta pelo professor José Hildebrando Dacanal, da editora Mercado Aberto”. Dois anos depois, 1996, eu deixaria ZH e logo entraria na equipe que produziria o Jornal da Universidade, idealizado pela reitora Wrana Panizzi e realizado pelos jornalistas Milena Weber e Clóvis Ott. 

Um dos locais de distribuição do jornal era a Porto do Livro, ampla livraria incrustada no campus central da UFRGS, ao lado do Bar do Antônio, de grande circulação de pessoas. Quem administrava o Porto do Livro? Ele mesmo, Arnaldo Campos. Um dia levei para mostrar a ele o “Gorkinho” que me dera; leu sua dedicatória e se emocionou. “Este livrinho vale mais do que nunca”, disse. A Porto do Livro foi uma das últimas livrarias do tipo clássico em Porto Alegre, antes da chegada das grandes redes com milhares de títulos e nenhuma alma.

Saí do Jornal da Universidade em 2004. Nunca mais vi Arnaldo, que logo seguiria para os lados da Serra Gaúcha. E, arrependimento!, nunca fui visitá-lo naquele porto de embarque, do qual zarparia para o sem-fim em 2012…


Juarez Fonseca é jornalista, crítico musical e acaba de lançar Aquarela brasileira (editora Diadorim), primeiro de três volumes que reúnem entrevistas feitas por ele desde a década de 1970.

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