Nossos Mortos

Barbot em três lembranças

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Barbot em três lembranças Imagem do filme "Esse Amor que nos Consome", de Allan Ribeiro (reprodução)

Morreu em julho, aos 72 anos, no Rio de Janeiro, o bailarino e coreógrafo (e figurinista e tanta outra coisa) Rubens Barbot. Nascido em Rio Grande, estudou com João Luiz Rolla e fez história em Porto Alegre até os anos 1980, quando se mudou para o Rio, onde faleceu. Terá sido o fundador da primeira companhia negra de dança contemporânea do país. Allan Ribeiro dirigiu em 2012 um documentário sobre sua trajetória, em parceria com Gatto Larsen (trailer aqui): “Esse amor que nos consome”. Aqui vai um fio de lembranças de sua vida.


Lembranças de Rui Moreira

Rui Moreira com Rubens Barbot (Arquivo pessoal)

Sou bailarino negro, paulistano, que conheceu Rubens nos anos 1990, quando eu atuava pelo mineiro Grupo Corpo. Uma vez ele e Gatto Larsen foram assistir uma apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e, ao final, me convidaram para jantar em sua companhia. Deste encontro surgiu uma amizade incrível. Rubens, com seu jeito irreverente de ser, destacava sempre, para mim, a importância de minha presença naquele importante agrupamento de dança.  Ele dizia: 

– Nego, a plateia vai ao teatro para te ver.  Se eu fosse tu, saía do Grupo Corpo e criava um negócio para ti.

De maneira indireta, mais tarde, foi o que fiz. Na sequência dos anos se tornou adorável e inadiável o compromisso de encontrá-los nas minhas idas ao Rio, para conversarmos sobre a vida e sobre as aventuras de Barbot pelas urbanidades cariocas. Um artista único com quem tive a oportunidade de falar sobre tudo e aprender um pouco sobre o que é ser artista negro de dança. Alguém que lançou olhares ousados para a sociedade e rompeu a duras penas com suas hegemonias e hipocrisias. Corpo livre e criativo, teve por muitos anos a parceria de um amor amigo, respeitoso e mais que transcendental de seu protetor Gatto Larsen. Uma dupla incrível que mostra a quem quer ver que a vida é cheia de opções, basta ter coragem para escolher e humildade aliada a uma grande força, para aceitar as consequências da própria escolha. Barbot partiu e deixou um legado que espero que seja ressaltado e espalhado. Não vivemos em um mundo onde a memória atua de maneira presente. Certo que ele será esquecido, como todos os artistas são. Mas quem conviveu minimamente com este personagem e riu ou chorou junto com ele pelas humanidades não terá como esquecê-lo. Ao externar aqui essas palavras/sentimentos, brotou um choro. Minhas lágrimas são um misto de tristeza, de agradecimento e de alegria.   

Rui Moreira


Lembranças de Raquel Pilger


Barbot com Raquel Pilger (Arquivo pessoal)

Recebi com muita alegria o convite para escrever sobre Rubens Barbot. Caderno e caneta na mão, não sei exatamente o que dizer. Foi uma das relações mais sinceras e intensas que tive na vida. Então, vamos começar do início: sou atriz e produtora em Porto Alegre, bacharel em Interpretação Teatral, especialista em Teoria do Teatro Contemporâneo pela UFRGS, e tenho alguns anos de ballet clássico. Faço Teatro há 39 anos. Fui sócia de Sonia Duro (a primeira a nos deixar) em uma empresa de produção chamada Elis Produções. 

Vimos Rubens pela primeira vez no espetáculo Freddy Sorribas, no final do ano de 1985. Um bailarino negro, baixinho, já com certa idade e sem uma técnica apurada (pausa para risadas), pois não executava grandes feitos físicos. Da periferia da cidade portuária de Rio Grande, apesar de já ter circulado por Porto Alegre e Buenos Aires, causava estranheza entre seus pares. Foi ignorado solenemente pela categoria e pela crítica (preconceito racial e de classe? Acho que sim) até receber o aval da bailarina alemã Suzane Linke, em sua passagem por Porto Alegre. 

Passamos a conviver, Rubens, Gatto Larsen, Sonia e eu, na extinta Associação dos Produtores de Teatro do RS. Daí para a amizade foi um pulo, pois nos reconhecemos como sendo da mesma tribo. A tribo dos que não fazem concessões, dos que rompem barreiras, dos que não aceitam classificações e dos que têm sonhos, tanto metafísicos como os de comprar a padaria na Demétrio Ribeiro, rua onde tínhamos nosso escritório. Nossa relação era do olho no olho, de mãos dadas, pro que der e vier. Faltou alguém na bilheteria? Eu faço. Consertar um figurino? Manda pro Rubens (ele deve ser estudado como figurinista também!). Um adereço cênico de última hora? O Gatto resolve. Da nossa tribo, ainda fazem parte Gelson Oliveira, Jade Bagattini, César de Ramirez e Mariam Starosta.

Nossa parceira mais significativa foi a produção de Dança Porto Alegre, quatro edições, mostra de dança contemporânea de grupos emergentes em busca de profissionalização no palco mais burguês do Rio Grande do Sul. Trouxemos especialistas do centro do país, como Antônio Faro e Marcos Bragatto, entre outros, para debates e ações formativas. Muita gente incomodada, de novo (mais risadas!).  

Gatto e Rubens se mudam para o Rio de Janeiro. César e Mariam depois. Apesar do vazio, penso que foi a decisão mais certa. Mais oportunidade de trabalho, de trocas, de aprendizagens. Porta aberta para o mundo. A cada retorno a Porto Alegre, a tribo reunida outra vez, em festa. Colaboração restabelecida.

Rubens Barbot construiu sua própria linguagem, que se consolidou, com a força de uma explosão, em “Só, um homem só”, espetáculo divisor de águas em sua carreira. Uma linguagem genuína e universal, reconhecida quando ganha o mundo. E que faz sua síntese, para mim, em “40+20” – com música genial composta por Gelson Oliveira (como queria rever!). Rubens era o que tudo aquilo que vimos no palco ou nos filmes dos quais participou, como na cena de “Esse amor que nos consome”, quando divide uma cerveja com um morador de rua. Honesto, forte, intenso, doce, solidário e humano. Rubens era oriundo da classe proletária. É a sua consciência de classe que define sua arte. A arte do comprometimento com o gesto do povo explorado das ruas, da africanidade, da mestiçagem, da sexualidade, do Brasil: profundo e real.

A história e o legado artístico de Rubens Barbot estão bem documentados para quem quiser aprender. Já as conversas ao pé do fogão e aquele sorriso cheio de dentes, esses estão comigo. 

Raquel Pilger


Lembranças de Carlota Albuquerque

Começo a escrever e como uma dança, as imagens flutuam… Desta memória, com paisagens cheias de afeto por Rubens Barbot. Tento aprisionar algumas. Tenho dificuldade para síntese, e acho que minha timidez (embora disfarçada na maioria das vezes) prejudica meu texto, minha fala. Neste momento, me conecto com os anos 80!  Saudades pelo frescor, pela inquietação, pelas ousadas descobertas, onde Rubens, Gatto, Sônia Duro, Raquel, foram protagonistas em diversos momentos. Rubens e Gatto foram responsáveis por projetos incríveis, debates e espetáculos sensíveis, corajosos, criativos aqui em Porto Alegre. “Só um homem só” nunca esquecerei! 

Criamos grupos diferentes, mas sempre estávamos conectados. Rubens e Gatto muitas vezes vinham na minha casa para montar a trilha de seus espetáculos (meu companheiro era editor de trilhas) e ali ficávamos conversando, nutrindo esperanças. Na época as edições eram com fita magnética de rolo, e os cortes eram no estilete. Como era muito demorado, conversávamos nos intervalos, discutíamos nossos espetáculos, sonhávamos com políticas públicas de manutenção de coletivos e projetos.

Um dia, no jornal Zero Hora, foi publicado um perfil de Rubens Barbot, que havia, merecidamente, recebido o prêmio Açorianos especial de melhor espetáculo de dança. Constavam ali breves perguntas. Entre elas: ‘‘coreógrafo que admira?’’ Rubens escreveu meu nome. 

neste exato momento que escrevo, sinto a mesma emoção do dia, e meu eterno agradecimento a este artista tão generoso e criativo. Ele nunca soube o quanto aquele momento foi importante na minha vida profissional (e pessoal). 

Para Rubens, meu afeto, admiração e agradecimento.

Carlota Albuquerque

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