Nossos Mortos

E tudo começou naquele velho estadinho

Change Size Text
E tudo começou naquele velho estadinho Mário Marcos de Souza, com o Pelé, no vestiário do Cosmos (Foto: arquivo pessoal)

Na primeira vez em que ouvi o nome de Pelé eu estava no alto de um pé de caqui no quintal da casa dos meus avós, na pequena Criciúma dos anos 50. Aquelas frutas vermelhas e suculentas eram irresistíveis para um moleque de nove anos. Por elas, deixei por alguns minutos as proximidades do rádio, onde ouvia a narração nervosa do jogo decisivo entre a Seleção Brasileira e uma retrancada equipe do País de Gales pela Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Quando estava lá no alto, ouvi o som inconfundível de um gol. Gritei por alguém e minha tia Ruth apareceu na porta. 

– De quem foi o gol? – perguntei.

– Do Brasil. Pelé – respondeu.

Nunca aqueles caquis me pareceram tão saborosos. 

Pelé (1940 – 2022) marcou profundamente a minha vida de torcedor, como aconteceu com todos da minha geração, a tal ponto que não deixava nunca de ouvir os jogos do Santos (como aquele 14 a 0 diante do Botafogo de Ribeirão Preto com oito gols de Pelé), e acabou sendo personagem de um dos momentos mais marcantes da minha vida de repórter da área esportiva.

Como aquele dia do pé de caqui, nunca mais deixei de me emocionar com a lembrança. 

Em junho de 1975, quando tinha cinco anos de jornal, fui escalado pela Folha da Manhã (da antiga Caldas Júnior) para acompanhar os primeiros dias de Pelé no Cosmos, de Nova York. Aos 35 anos, Rei do Futebol desde muito, com três Copas pela Seleção e dois Mundiais pelo Santos, Pelé vestiria pela primeira vez uma nova camiseta – um desafio que garantiu a ele o maior contrato de sua carreira (US$ 5 milhões na época). Era um acontecimento – e o jornal decidiu cobrir ao menos o início de tudo.

Cheguei na semana do jogo de estreia contra o Dallas Tornado, marcado para o dia 15 de junho.

Na manhã seguinte à chegada, bem cedo, tomei o rumo do Downing Stadium, na Ilha de Randall’s, perto de Manhattan. Era um antigo estadinho de beisebol, que o Cosmos usava para seus jogos, ainda sem noção do que significaria ter Pelé na equipe. O estádio ficava abaixo de um complexo de pontes. 

Quando ultrapassei o portão, levei um choque.

O estádio, pequeno e com jeito de abandonado, tinha arquibancadas escuras, gramado ruim e lixo acumulado atrás de uma das goleiras. Seria o local dos primeiros momentos de Pelé no futebol dos Estados Unidos, bem diferente dos locais suntuosos usados pelas equipes do futebol americano ou de beisebol. 

Percorri uma curta distância na chamada pista atlética até um grupo de pessoas, todas ligadas ao Cosmos. Deu para ver que nenhum dos jornalistas enviados do Brasil tinha chegado. 

– A que horas o Pelé chega? – perguntei a um americano com jeito de assessor.

– Ele já está aí. Está no vestiário, no fim deste corredor – me apontou, numa época, é bom lembrar, em que não havia os cuidados de hoje com segurança. 

Nos dias atuais, o acesso seria bloqueado. Naquele momento, me encaminhei para o local indicado sem nenhuma dificuldade – e sem pedir autorização. 

Era um corredor estreito, escuro, que terminava no vestiário. Uma espécie de túnel de acesso ao campo. Caminhei por ele e, depois de alguns segundos, chego ao local dos jogadores. Pelé estava sozinho, de sunga escura, e com o pé direito apoiado em um banco de madeira verde, terminando de ajeitar a atadura, pouco antes de vestir as meias. Foi uma surpresa.

Nas coberturas, nas viagens, talvez toda a vida de Pelé, era praticamente impossível encontrá-lo sozinho, sem dezenas de pessoas em volta. Pois naquele dia, ele estava solitário, preparando-se para o primeiro treino, chegando bem antes dos companheiros. É sorte de repórter que se fala? 

Depois de uma rápida apresentação, sentei em uma ponta do banco e comecei a conversar com Pelé. Este lado dele eu conhecia bem. Apesar da fama, do sucesso, de ser considerado o melhor jogador da história, Pelé nunca deixava de atender os repórteres – mesmo naqueles dias em que ficava cercado por torcedores em busca de autógrafos. Ele não deixava de ouvir as perguntas, apesar do tumulto, e respondia sem perder o rumo. Naquele vestiário, então, estava à vontade. 

– Tive de ensinar a alguns companheiros aqui do Cosmos até sobre a melhor forma de colocar a atadura – explicou, sorridente, ao mostrar todas as voltas que a fita dava em seu próprio pé. 

Falou do novo desafio, depois de ter se despedido do futebol brasileiro, da motivação para incentivar o futebol nos Estados Unidos, como o pessoal da Warner queria, da certeza de que teria sucesso. Nenhuma barreira parecia capaz de assustar alguém que saíra da pequena Três Corações para conquistar as três Copas e os dois Mundiais de Clubes, fazer mais de 1,2 mil gols e parar uma guerra na África. E quando perguntei sobre o reinício, depois de uma carreira de sucesso absoluto, Pelé me deu a resposta que acabaria repercutindo nos dias seguintes:

– Eu me sinto tão animado como nos primeiros tempos de Baquinho (o Bauru Atlético Clube, time daquela cidade em que foi destaque antes de se transferir, aos 15 anos, para o Santos). – É como se estivesse de volta àqueles dias – destacou, sem mostrar qualquer dúvida sobre seu potencial para firmar o futebol em um país de esportes consolidados. 

E Pelé fez isso.



Com aquele entusiasmo habitual e uma capacidade espantosa de motivar os companheiros, a ponto de sempre ser o primeiro a chegar para os treinos, Pelé estreou no domingo contra o Dallas Tornado, lutando para superar a quase incompatibilidade dos demais jogadores do Cosmos com o futebol, fez o segundo gol que garantiu o empate em 2 a 2, teve a segunda partida em Boston interrompida porque a torcida não se conteve e invadiu o gramado da Universidade para abraçar o brasileiro, e forçou os donos do clube a buscarem um novo estádio para dar conta do interesse do público. Passou a jogar no Giants, com grandes públicos.

Pelé agitou o ambiente até 1977, quando encerrou a carreira definitivamente, fez gols de bicicleta e viu mais uma de suas previsões se confirmar: o futebol cresceria por causa das crianças. E foi assim. Escolas e universidades passaram a ter futebol e a formar equipes mistas porque viram que, ao contrário dos outros esportes do país, não era preciso ser forte, nem alto, para jogar. Ao contrário do futebol americano, era um esporte sem violência.

O país sediou uma Copa (a de 1994, com sucesso de público), passou a formar ídolos e agora se prepara para organizar o torneio de 2026, junto com México e Canadá. 

E tudo começou com Pelé naquele velho e abandonado estadinho da Ilha de Randall’s. 


Mário Marcos Souza é jornalista esportivo.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.