Nossos Mortos

Extraviados num dia blue

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Extraviados num dia blue

Texto feito como homenagem ao Flávio Mainieri, que em vida ele leu, releu e deu pitacos e foi publicado recentemente no livro Arca, org. por Liana Timm, em homenagem a Porto Alegre, (2023).


Antes que eu parta definitivamente para Paris, para morar no lugar que escolheste para viver, querido amigo Flávio Mainieri, proponho perambular por esta cidade acontecida à beira da água, chamada Porto que se pretende Alegre. Somos estranhos por ela adotados, chegados do interior para “fazer faculdade” e nela amarramos sonhos, trabalho, conquistas e tristezas, e aqui estão nossas memórias e raízes. Por isto, penso num dia muito azul e frio para os pés nos levarem por dobras e memórias da cidade, bonitos e apoiados em nossos óculos e bengalas.

Atravessaremos a cidade erguida entre algumas montanhas e à margem das águas de um rio, talvez lago, quiçá lagoa, nunca mar. Vamos pisotear o mapa da cidade construído com a alegria morna de habitantes feitos da carne e do humor de europeus fugidos; com o melancólico legado dos casais portugueses e com a violência de chimangos e maragatos que brigaram para domar estas terras. Assim foi construída a capital de um estado mais duro, diferente do Brasil, arrogante em seu mito da superioridade, ambíguo porque nem queria pertencer ao país.

Paris e Porto Alegre estão longe do mar, mas nelas muito andamos e nadamos como flâneurs de Baudelaire e Benjamin. “Nunca longe da literatura” é nosso lema, mas hoje não faremos a discussão barata que compara o cinema a ela, a literatura. Voltemos, querido amigo, ao esboço pretendido para também nos divertirmos, cavoucando lugares onde podíamos ficar, beber, dançar, beijar, seduzir… Muitos espaços já fecharam e tantas pessoas queridas morreram, mas vamos encontrar alguma chave.

Gosto desse passeio, de mãos dadas, rindo por qualquer bobagem e aconchegados neste outono. Gosto do cheiro deste teu gasto casaco de couro, dos carpins coloridos, da calça jeans, do blusão de cashmere vermelho e do sapato preto de verniz. Dançaremos, sim! Vejo teu olhar e sei que aprovas minhas botas vermelhas, a saia longa, a blusa de renda branca e o casaco de veludo azulão porque as noites estão mais frias e talvez me sinta nobre neste modelo. Bem vestidos demais para andar pela rua. Que não nos assaltem, dizes.

Vamos iniciar com o café da manhã na cafeteria dos jardins do DMAE, porque a grama estará molhada da chuva de ontem e sentiremos o cheiro da terra. Depois caminharemos por calçadas que ainda mantêm casas antigas como que bordadas, instaladas em bonitos jardins, até chegarmos à dita rua “mais linda do mundo”. Momento em que citas as várias ruas do mundo tão mais lindas do que a Gonçalo de Carvalho. Nasceste crítico sobre tudo, e digo amém!

Pela Independência bateremos à porta do Encouraçado e do Bere Ballare, mas não encontraremos Gilda Marinho, nem Tatata Pimentel. Por onde andarão? Olhamos melancólicos por alguns palacetes que sobreviveram à devassa imobiliária dos anos setenta e deixaram a cidade mais feia. Em linha reta, encontraremos a rua da Praia, sem areia, sem água, sem guarda-sóis, e depois dela, veremos o Mercado Público imponente, com seus cheiros de folhas, queijos, erva-mate e peixe, guardado há mais de 150 anos por Orixá Bará, o Santo Antônio no obrigatório sincretismo religioso, dizem. Bem ao lado da Prefeitura, onde muito dançamos com a vitória da Frente Popular, logo depois que a democracia retornou ao país. Por 16 anos, a cidade renovou seus votos nesse projeto. Almoçamos no Gambrinus e digo que Paris não tem nada que se pareça a este porão antigo, com perfeitos bolinho de bacalhau, garoupa e uma salada de maionese. Brindamos com chopp, que nem combina com peixe. A sobremesa vem da banca 40: uma exagerada Bomba com sorvete, nata, frutas e muito prazer. Concordamos que ninguém mais deseja nossos corpos e podemos até engordar sem muita culpa.

Leves e tontos escalaremos a Borges até o viaduto que pretendia ser um aqueduto romano. Sentaremos em frente ao corajoso Teatro de Arena, arena de resistência no tempo cruel da ditadura, mas Jairo de Andrade já saiu. Muito perto está a praça dos muitos poderes, com o teatro, a igreja, a justiça, o legislativo e o governo do estado. Lugar cunhado por manifestações de professores em busca de salários e dignidade; pela defesa da TVE. Sentaremos perto da figueira onde ainda é possível sentir o cheiro de brasas do acampamento dos sem-terra, porque essa praça tem cheiro de povo, apesar da ostentação. Ainda ecoam discursos e o sangue, mas as crianças brincam à sombra da complexa estátua castilhista construída com símbolos positivistas e republicanos. 

Podemos embarrar os sapatos e tentar subir as escadas de mármore desse Palácio, com tapetes vermelhos. Talvez distrair os guardas e chegar aos jardins para dormitar num dos bancos. Logo tentarão nos expulsar, mas poderemos usar a senha “professores da UFRGS” procurando o Memorial da Legalidade, a sala de onde Brizola comandou centenas de rádios na histórica resistência em defesa da posse de Jango, lá em 1961, quando Jânio renunciou. Brizola conseguiu, mas Jango optou pelo parlamentarismo. Eram arranjos para o Golpe de 64.

Seguimos pela Duque até a Escadaria do Amor, que bem poderia estar em Paris, para não se chamar rua João Manoel. Aqueles duros degraus foram o esconderijo generoso daqueles que precisavam se esconder para namorar, se tocar. Tudo era possível quando escurecia. Somos da geração de desejos controlados, da agarração em carros, esquinas escuras, inferninhos, das mentiras porque eram “gurias de família”; do medo e alegrias dos homens com homens e mulheres com mulheres, embora para as meninas o afeto mais explícito fosse considerado natural. Com certeza, não gostaremos da pintura psicodélica que fizeram nos últimos degraus. 

Chegamos então ao Alto da Bronze, lugar de majestático título, mas onde os bordéis iluminavam de vermelho a rua dos Sete Pecados para guiar os homens que pudessem pagar o trabalho e prazer das mulheres de vida fácil. Que de fácil nada tinha, dizes. Rimos imaginando se os pecados cometidos seriam contados baixinho no confessionário da Catedral e da Igreja das Dores e se, quando perdoados, voltariam a ser cometidos. Logo entramos no castelinho gótico-medieval, onde a exposição de etéreas imagens não parece amenizar a história deste lugar, construído por um poderoso e ciumento empresário que ali aprisionava sua jovem amante. Por qual destas janelas teriam fugido a moça maltratada e seu filho?

Estamos longe, mas é possível chegar na hora de embarcar no Cisne Branco e navegar pelo confuso e alaranjado pôr-do-sol, que tem a cor da despedida. Será que os primeiros velejadores também testemunharam este céu escandaloso tido como o “mais lindo por-de-sol do mundo”? Logo começas a citar os tantos estranhamente maravilhosos que vistes, afinal é sempre o mesmo sol a se exibir. O céu se apresenta lotado de estrelas, enquanto bebemos um espumante barato e ruim, mas que nos faz brindar aos momentos da vida passados por nós, como fios das aquarelas de Joaquim Fonseca. Deito em teu colo e lá de cima um risco de lua me espia e descobre meu pensamento triste no rosto contente. 

A música de Caetano melhora tudo e nos faz rir porque somos a letra do Eclipse Oculto e cantamos: “… nosso amor é bonito / Só não disse ao que veio / atrasado e aflito/ E paramos no meio sem saber os desejos aonde é que iam dar…” Foi sempre assim, nestes quarenta anos, nós e um raro amor da amizade mais profunda, sem corpo.

Noite fechada quando chegamos, abraçados à terra firme, com pressa para chegar ao melhor palácio, o Theatro São Pedro. Um bom café e duas taças do melhor espumante. Foram quatro, porque assistir Pina Bausch em Café Müller é assistir a um pedaço da solidão de homens e mulheres, é sentir saudades e uma vulnerabilidade incontroláveis, é ver fragmentos de um doloroso futuro distópico, é ficar à deriva, sem margem para chegar. Saímos com o choro entalado e as mãos quentes de tanto aplaudir. Ainda em silêncio, ocupamos um canto no Lugar Comum e encontramos o olhar impactado de outros também tocados por Pina. Aos poucos, a música, a boa comida, e um definitivo Malbec nos faz brindar à vida espichada e ao teatro nosso de cada dia.

Atordoados pelo dia repleto, ainda conseguimos chegar ao Ocidente para ouvir o bom rock, sacudir a palidez trazida do Café Müller, sacudir as carnes e passar a mão em peles alheias. Lugar vital nos anos oitenta para os diferentes em suas opções sexuais, políticas, artísticas. Aqui a AIDS nos encontrou, amedrontou e matou. Já cansados, seguimos para a Esquina Maldita a tempo de ouvir a Nega Lu cantar Summertime, no Alaska. A cerveja não caiu bem, mas pedimos outra e penso ver um Batman atrás de ti e me dizes que são dois. Duplamente intrigados saímos. Um táxi nos levará até o Flowers porque Cauby está na cidade e deve ir até lá. Na chegada, o motorista diz: “Que vergonha uma boate para bixas, em Porto Alegre!”, e o convidas para entrar. O cara xingou até os antepassados.

Amanhecia quando chegamos ao teu apartamento. Gosto de te ver nos quadros, objetos, no sofá bordô, nas centenas de livros e discos. Finalmente, a quietude para fumar um e ouvir Chet Baker. Amanhã é o dia do Fórum Social Mundial e iremos porque acreditamos que um novo mundo é possível, como aqueles das barracas que lotam o parque Harmonia. Sempre acreditamos novamente, nas passeatas contra a ditadura na Salgado Filho; nos gritos por Diretas Já! na Borges; quando denunciamos a pobreza e a violência; quando dissemos “ele não” e quando votamos.

Talvez possamos assistir, mais uma vez, Rocco e seus Irmãos, no Vogue, e depois borboletear no Baile da Reitoria. Não estarei no domingo, quando aplaudires Elis Regina, em seu último show, antes de morrer estupidamente. Estarei partindo, depois de despedir-me do IAB e atravessar o parque da Redenção. Claro que estarás comigo nos brindes, nos cheiros e lugares, nas músicas, nos passos da dança, em beijos, boas risadas e no desejo fugaz.

Vou porque lá me aguardam. Levo pouca bagagem, muitas lembranças e a certeza de que nos reencontraremos, distraídos, numa destas pontes entre o Guaíba e o Senna.


Maria Helena Weber é professora no PPG em Comunicação da UFRGS e escritora.

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