Nossos Mortos

Na parede da memória

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Na parede da memória Nico Nicolaiewsky em foto de Gabriel Lopes-Salomão

Desde que eu era apenas um bebê meu pai tinha aquela câmera. Uma Olympus Pen. Foi com ela que eu comecei a gostar de fotografia. Na 4ª série, cheguei a levá-la escondida, jurando que impressionaria alguém. Fazia mais pose para tirar as fotos do que as pessoas que eu fotografava. Não deu certo, ou pelo menos não parece ter surtido efeito.

Naqueles tempos meu mundo se resumia a ouvir música, brincar no pátio e visitar os avós nos finais de semana. 

A fotografia e a música fizeram parte da minha vida desde sempre. Pequenino, já colocava sozinho os discos na vitrola. Caetano, Verdi, Beatles, Bach, Chico, Beethoven, Rolling Stones, Martinho, Focus, Caymmi, Lamartine e por aí me perdia. É o que faço até hoje.

Há muitas histórias a serem contadas. Mas o que trouxe essas memórias à tona? 

Sempre gostei de lidar com o agora. Nunca fui de fazer planos. Mas sempre reparei nas direções a que as nossas decisões nos levam e em como coisas que às vezes parecem não ter sentido em determinado momento se encaixam ou convergem para algum ponto na linha da nossa existência. A música, a fotografia, o gosto pela estrada herdados das histórias motociclísticas de meu pai; a dedicação e o carinho que via em cada gesto de minha mãe.

E eis que, num domingo de saudade, vendo todo esse emaranhado de vidas, histórias e maravilhas e tristezas que ocupam o tempo para sempre, recebo um chamado do professor Luís Augusto Fischer pedindo para que eu escrevesse algumas linhas sobre um artista que admiramos comumente. Minha primeira reação foi sair correndo. Expliquei-lhe: “Professor, me tornei fotógrafo justamente por não ser bom com as palavras”. Mas, por envolver pessoas que muito admiro, resolvi arriscar.

Foi num final de tarde do ano de 1984, na rua Ladislau Neto, no bairro Ipanema, que o vi pela primeira vez. Eu e meu amigo Caio Franarin tínhamos 12 anos e estávamos sentados na mureta em frente à casa de sua mãe (Marilourdes, produtora desde sempre do Tangos & Tragédias e atual da Sbórnia), quando dois magros amalucados apareceram com um punhado de papéis numa pastinha, conversando entre si, agitados. Pararam, nos cumprimentaram e entraram na casa. “Sabe quem são esses caras?” – Caio me perguntou. “Não”, respondi curioso. “São Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky”.

Mal sabia que estava testemunhando o nascimento do Tangos & Tragédias, um dos espetáculos musicais mais incríveis, originais, carismáticos, autênticos e longevos do planeta. Estavam alinhando os últimos detalhes para a estreia do espetáculo no Espaço IAB, no centro de Porto Alegre, que logo chegaria aos palcos do Theatro São Pedro e de lá para tantos outros lugares.

Mas maiores que o próprio espetáculo eram os dois magros. Comecei a acompanhar o trabalho do Nico. Um coração genial. Quem não se derrete escutando “Feito um picolé no sol”?

E daí acontece aquela mágica; todos aqueles rastros, todos os caminhos curvos e torcidos da vida às vezes se encontram. Acho que foi em 1997 que fiz as fotos que ilustram este texto. Em uma apresentação do Tangos no novo teatro da PUC-RS. Aquela Olympus, aquela liberdade toda de poder fuçar nos discos dos meus pais, as amizades, os amores e tudo o que houve depois e todos os cruzamentos de histórias de vidas acabaram trazendo uma chamada do Fischer num domingo. No domingo em que completavam 7 anos sem o Nico neste plano. 

“Nicão continua conosco”, me diz o Hique. E completa: “Ninguém morreu!” (já cantava Luiz Melodia). 

Eu, que tão pouco fiz, mas sigo fazendo, sou eternamente grato. À arte e aos arteiros. Fotografar os palcos era uma predileção. “Mas daí é fácil”, diriam alguns. Sim, mas nem sempre. A foto mostra a verdade das pessoas. Às vezes o artista não está bem, às vezes a luz não está boa, às vezes o próprio fotógrafo não está bem. Mas, como o Caio me disse: “O Nico ajudava o fotógrafo, né?”.

É. Ele era música em forma de gente.

Nico hoje mora comigo. Mora na gente; e uma centelha está eternizada em forma de sais de prata e celulose na parede do Gravador Pub.


Gabriel Lopes-Salomão é fotógrafo e proprietário do Gravador Pub, que já teve a honra de receber nomes como Hique Gomez, Little Jimmy Reed, Bebeto Alves, Arismar do Espírito Santo.

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