Nossos Mortos

O longo adeus

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O longo adeus

Madrugada do dia 20 de setembro de 2012. Por volta das 5h, dirijo pela avenida Protásio Alves em direção à Cidade Baixa, enquanto Cartola interpreta os versos desiludidos de O mundo é um moinho. A canção toca uma vez, faço rodar novamente, depois uma terceira repetição, e ainda mais duas vezes. Pergunto-me por que tanto desejo de ouvir as advertências do poeta. E não são apenas os versos. Há também a dicção carioca de Cartola, que me faz lembrar meu pai, Arnaldo Campos. O falar chiado, um tanto lusitano, com a forma verbal na segunda pessoa do singular ao invés da terceira, tão hegemônica entre os cariocas. Aquerenciado no Rio Grande do Sul, meu pai também trocara você pelo tu.

Nascido em 1932, no bairro do Quintino, mas criado no Méier, o pai chegou a Santo Ângelo e, logo em seguida, a Porto Alegre, em 1955. No Rio de Janeiro, a vida era difícil para ele, não só em razão da miséria, mas também por uma violenta relação com aquele que teria sido, além do papel, meu avô paterno – não o conheci. Meu pai carregou a mãe e um casal de irmãos, mais jovens, para o Rio Grande do Sul, com o apoio de um tio. Em 1956, conheceu Iara Marques da Silveira. Casaram-se. No ano seguinte, nasceu minha irmã, Bartira. Eu nasci em 1960. Fomos uma família feliz até fevereiro de 1973, quando o casamento se desfez, dando início a um tempo de desavenças entre todos. Desde então, o pai e eu passamos a viver períodos de aproximação e de afastamento. 

Nos livros e na literatura, o pai encontrou refúgio de suas próprias dores. Ele sempre foi mais feliz nos momentos em que esteve próximo e bem sucedido – não necessariamente nos resultados comerciais – com as atividades relacionadas ao livro. Ou, pelo menos, é esta a associação que faço. Em casa, a lembrança que tenho do pai é de uma figura triste e fechada em si mesmo, muito diferente daquele que encontrava na Livraria Vitória – a primeira que fundou, em 1961. Morávamos na rua Corte Real, no bairro Petrópolis. Com frequência, à noite, tomávamos o bonde – a mãe, Bartira e eu – rumo ao centro da cidade, para encontrar com o pai, faceiro, na livraria.

A Vitória estava instalada num corredor de três metros de largura por sete de comprimento, num prédio centenário em frente à Praça da Alfândega. A construção abrigava a sede do Partido Social Democrático. O pai alugou o corredor. Com as estantes, o espaço se tornou bem apertado para o considerável público que atraía. Três ou quatro anos depois, com o golpe de 1964, o pai foi preso em razão da militância no Partido Comunista do Brasil. A livraria, fechada. Ao reabrir, o negócio perdeu o nome por ordem judicial do governo. O pai e o sócio e amigo, Brutus Gemignani, decidiram apenas retirar a placa que identificava a loja, mas isto não bastou para a ditadura, que exigiu um novo nome. Daí surgiu a Coletânea, denominação com a qual a livraria ficou mais conhecida.

O pai voltou a ser sorridente, falante, brincalhão com o lançamento de seus primeiros títulos no final da década de sessenta e no início dos 1970. Em 1969, pela Editora Movimento, surge O Degrau, livro de contos. Em 1971, também pela Movimento, as antologias Roda de Fogo e Porto Alegre, ontem e hoje. Roda de Fogo reuniu nomes consagrados, como Josué Guimarães e Paulo Hecker Filho, ao lado de estreantes como Caio Fernando de Abreu, Moacyr Scliar e João Gilberto Noll. Para a promoção do livro, realizamos viagens inesquecíveis a São Paulo e Rio de Janeiro. O pai usava bigode e costeletas, e nas fotos deste período, quase sempre usando calça branca, exibe um sorriso e um olhar plenos de felicidade. 

Era um Arnaldo diferente daquele do qual me lembro na segunda metade dos anos 70. Em 1977, por exemplo, em outra viagem indelével, o vejo novamente ensimesmado. Afastado dos negócios com livros e da literatura, o pai encontrava algum prazer em dirigir veloz o Corcel 1972 branco que adquirira zero quilômetro. Às vezes, num sábado ou num domingo, partíamos, ele e eu, em viagens bate e volta que hoje, com o movimento bem maior das estradas, me pareceriam uma insanidade. Naquela oportunidade, saíamos de madrugada de Porto Alegre para visitar o parque arqueológico de São Miguel Arcanjo, em São Miguel das Missões – ida e volta, desde a Capital, cerca de mil quilômetros. 

O parque arqueológico surgira havia pouco, o número de visitantes era muito pequeno – naquele dia nublado, éramos somente nós – e não havia nenhuma área de acesso restrito. Tive a oportunidade de subir a um ponto muito alto da ruína, por meio de passagens existentes dentro das paredes – hoje de acesso proibido. Do alto, vejo o pai, sentado no gramado, distante em seus pensamentos. Eu o chamo, ele olha para cima, abana, sorri e retorna a si mesmo. Ao longo de minha vida, estive outras duas vezes em São Miguel – além do encontro com a história gaúcha, é sempre um reencontro emocionante com meu pai.

Outro espaço que associo à memória do pai é a praça da Alfândega, não só pela localização da livraria. Depois da separação dele e da mãe, foi na praça que muitas vezes nos reunimos para conversas nem sempre tranquilas ou agradáveis. A Coletânea, então, já se encontrava sob comando de Brutus, e o pai trabalhava como representante comercial – vendia panelas de alumínio, artefatos de porcelana, cadeiras de praia, metais sanitários. Ganhava dinheiro.

Foi na praça também que compreendi meu pai como um herói, quando teve uma atitude surpreendente para seu comportamento pacífico. O pai se enfureceu com um policial militar, que conduzia com violência um garoto em situação de rua. O menino, resistindo à apreensão, gritava. O pai, ainda respondendo a processo judicial pela atividade política, enfrentou o policial e fez com que soltasse o garoto. Uma multidão assistiu a cena, sem interferir. Não lembro exatamente o que pai disse ao policial, mas foi o suficiente para constrangê-lo e fazê-lo se afastar.

Nos anos 1980, o pai se reaproximou da literatura e dos livros. Assumiu a Coordenação do Livro na Secretaria de Cultura de Porto Alegre, abriu a livraria Porto do Livro, no Campus Central da UFRGS. Em 1983, lançou, pela Mercado Aberto, a novela Réquiem para um burocrata. A partir daí, a Mercado Aberto tornou-se a editora de todos os títulos individuais que lançou até o final da vida. Em 1986, A boa guerra. Em 1994, A ceia do diabo e Breve história do livro. Nesta época, vivemos um período de muita proximidade, principalmente pela parceria na atividade comercial. Parecia que nunca mais viveríamos outro momento de afastamento, mas não foi isto que ocorreu.
Naquele dia 20 de setembro de 2012, depois de ouvir meu pai na voz de Cartola, acordei ao meio-dia com o telefone tocando. Do outro lado da linha, uma voz pouco conhecida me avisava sem rodeios: “Teu pai morreu.” No mesmo instante, tive duas certezas. A primeira era de que, naquela madrugada, desde Gramado, o pai se despedira de mim com os versos de O mundo é um moinho. A segunda era de que nosso último afastamento – que cabia a eu haver interrompido – não teria mais fim, num longo e interminável adeus.


Poti Silveira Campos é jornalista, escritor.

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