Nossos Mortos

O rei e eu

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O rei e eu

Contar como foi dirigir Pelé em um comercial para um banco, anos atrás, antes da Copa da África do Sul, tem duas motivações: protagonizar o clichê, tão ao gosto local, “o gaúcho que dirigiu o Pelé”, e compartilhar a impressão que o Rei deixou em mim como um daqueles depoimentos que damos em uma despedida. Não fosse o homenageado o Pelé, talvez esse texto fosse irrelevante.

Antes de tudo: em 2020, no Dia dos Pais, fiz um post sobre a falta que fez o abraço de um pai na vida da Sandra Regina Arantes do Nascimento. Por experiência própria, me solidarizo com todos os filhos e filhas negligenciados e acho imperdoável o abandono parental. Feita a ressalva, deixo o Edson de lado e começo a falar do Pelé.

Na verdade, não sei se meu encontro foi com um ou com outro. Seria muito difícil perceber que ali, a não mais de 3 metros, não era a figura mítica se movendo, o ser humano mais conhecido no mundo em todos os tempos – caso Jesus não tenha existido. Não lembro se fiz a pergunta: “Te chamo de Edson ou de Pelé?”, mas eu já tinha decidido que seria muito mais divertido mandar um “De novo, Pelé!” ao invés de “Porra, Edson!”.



A confusão começou com a atenção que ele dava a todos, o sorriso, a espontaneidade. Aquilo não parecia vir de alguém que já viu, viveu e sentiu absolutamente tudo que uma existência pode oferecer, já esteve com todos os grandes nomes da segunda metade do século XX, que se divertiu com Andy Warhol, dançou com Mick Jagger, foi talvez o monarca mais alto aos olhos do mundo como Rei do Futebol junto da Rainha Elisabeth, e alcançou feitos que nem uma única outra pessoa conseguiu. Naquele dia, por algumas horas, ele estava trabalhando em um estúdio de filmagem em São Paulo comigo e minha equipe. 

Pelé chegou diretamente no set – pra quem não conhece a dinâmica, tem estrelas que costumam se encastelar no camarim e só dar o ar da graça pelo mínimo tempo necessário. Conheço pessoas absolutamente comuns que tratam esse simples procedimento no dia a dia como um jogo de poder, colocando-se numa posição em que qualquer outro é que tem que ir cumprimentar o “ungido”. Ora, tenha paciência.

Eu sabia que aquela seria a maior emoção da vida profissional de todos ali e observei, com gosto, a expressão de contentamento no rosto de cada um dos meus colegas enquanto Pelé apertava a mão de todo mundo INDO até a pessoa até mesmo lá no fundo do estúdio. E depois permaneceu quase o tempo todo conosco. Em filmagens, uma simples mudança de posição de câmera leva vários minutos. Numa dessas, expliquei a ele o que iríamos fazer, liberei-o para ir para seu camarim e fui fazer minha função com a equipe. Mas ele ficou ali, em pé do lado do cenário, se virou pra primeira pessoa ao seu lado e puxou assunto. O eletricista, no caso, não sabia se largava o tripé para ouvi-lo ou se terminava sua tarefa. Eu conversaria, claro. Naquele dia, todos estavam liberados pra ter seu momento inesquecível.



Pelé foi ao camarim apenas uma vez, e só porque era preciso fazer uma movimentação significativa no cenário. Era um camarim bacana mas simples, nada de mais. Ele não havia feito qualquer tipo de exigência extravagante. O respeito e a consideração que a equipe teria com qualquer outro profissional era o suficiente para ele. Já vi gente boba fazer cara feia pra camarins melhores. 

Tentei conversar frivolidades com o Cara (vamos manter essa maiúscula) e não me render à curiosidade pelas suas histórias: o tempo pra elas não caberia entre um take e outro. E assim fomos para onde, talvez, fosse de fato seu chão. Tanto que, mais adiante, ele perguntou onde eu morava em São Paulo. “Ah, moro bem pertinho. Vamos ver um jogo do Brasil, eu não vou pra África esse ano!”. Bem assim. Juro pela saúde da minha mãe. Você tem a sensação de ser tocado pela mão de Deus, mesmo sem acreditar Nele. A cabeça meio que entorta, faz um bzzzz no cérebro. Eu não peguei o contato do agente dele na hora. Depois eu consigo com um amigo que o conhecia, pensei. Seria mais cool. O bobalhão não me deu, quis “preservar a confiança”, e perdi a maior história da minha vida.



Eu não lembro exatamente como puxei o assunto, mas devo ter perguntado quem seria o segundo maior jogador de todos os tempos. Ao contrário de 99% dos palpiteiros, ele havia de fato visto Di Stéfano, Puskas e outros jogarem, sem falar no Garrincha. “Maradona?”. Naquela época, o meu xará andava sendo bem maldoso com o Rei, e por isso, acho que pra dar uma espetada que, elegantemente, Pelé nunca alimentou, ele me sussurrou: “Nããã. O Zico era melhor que o Maradona.”.

“Não viaja, Pelé!”. Pensei. Mas eu disse que também achava.

Esse vinha sendo meu dia com o Pelé. Mas, olhando hoje em retrospectiva, instigado pela tarefa de repassar esses momentos, vou concluindo que aquela pessoa que gostava de prosear era o mineiro de Três Corações que talvez nunca tivesse sido moldado pela avalanche de vida. Seria por isso que ele se referia ao Pelé, publicamente, na 3a pessoa?

Uma última ação rendeu a lembrança mais marcante e que, pensando bem, me ajuda agora a chegar a uma conclusão. Fora do roteiro, que era ele conversando com um editor de imagens numa ilha de edição, revendo um lance de um gol seu que começara lá atrás com o goleiro, para mostrar um trabalho em equipe (desculpa mas eu não achei o filme), resolvi gravar o texto inteiro com o Pelé (agora era o Pelé de novo) olhando pra câmera, contra um fundo verde. Um mau profissional que quisesse se livrar logo do compromisso, tenderia a reclamar: “Mas onde você vai encaixar isso?”. 

Era véspera de Copa do Mundo, ele estava com a agenda apertadíssima, e seu agente poderia simplesmente alegar que não tinha 30 minutos sobrando. Não. Nenhum problema. Se era preciso, iríamos fazer. E foi assim que eu vi o Pelé, sentado na sua posição, cutucar a menina de não mais de 20 anos que ainda ajustava o teleprompter na câmera: “Menininha, menininha, lembra de mim?”. Eu ri. Ela também. Mas ele estava falando sério: “A gente já trabalhou juntos, lembra?”. Educada e muito timidamente, ela mandou um “ARRÔ. Mas deve ter pensado: “MANO, CLARO QUE EU LEMBRO, NÉ?”. Para o Edson, era possível que ela não tivesse reparado.

Atletas e, no caso dele, ex-atletas, ganham a maior parte de suas fortunas com propaganda. É de se esperar portanto que cumpram seus compromissos fora do esporte com profissionalismo. Minha experiência com alguns deles mostra que isso não é tão evidente. Depois desse dia com o Edson, nunca mais toleraria estrelismo ou manha de artista ou de “entourage”. Por sorte, uma única vez precisei dizer: “Se o Pelé não encheu meu saco, não vai ser tu, né?”.

Pelé tinha que viajar dali direto pro Uruguai. Na saída, encontrou uma fila de funcionários dos outros estúdios. Os esforços para manter sua presença em segredo foram inúteis e, durante a tarde, todo mundo havia escapado pra comprar bolas e camisetas da Seleção ou do Santos. Ele atendeu TODOS. O helicóptero teria que esperar. E, casualmente, antes de eu começar a escrever esse relato, meu amigo Dimi me ligou e relembrou um detalhe desse desfecho. 

Como a fila era grande e Pelé precisava sair, a partir de um momento o Dimi passou a autografar junto com ele, copiando a marca que, convenhamos, é fácil de fazer. Na muvuca, não dava pra ver: pega do fundo e devolve. Mas tinha o mesmo valor: todos estavam vivendo um momento mágico com o Rei. Pouco importava se quem recebeu um autógrafo era do Pelé ou do Dimi.

Meu pai foi uma figura ausente na minha vida e maravilhoso para meus dois irmãos, nascidos na sua quase segunda vida. Ele sempre será as duas coisas. No fim das contas, talvez eu tenha passado o dia com o Edson, que foi um cara incrível, que foi um gênio, e que tem todo o direito de ser falho, sem que isso signifique absolvição. Mas, muito menos, um cancelamento. Quem é você, alecrim dourado, para cancelar um gênio?

As fotos que ilustram esse relato foram uma brincadeira sugerida por ele: “Eu te dou uns toques sobre direção e você me ensina a bater de três dedos”. Uai, e eu era besta de deixar passar essa, sô?



Diego de Godoy é diretor de cinema e jornalista.

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