Nossos Mortos

Os acomodados que se incomodem

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Os acomodados que se incomodem Discos de Rita Lee - Reprodução

Desculpe o auê. Eu não queria magoar você. Pois é. A Rainha do Rock nos deixou neste 8 de maio. Com 75 anos, cedo demais. Os que viveram os anos 1970 caminharam com ela, essa artista ímpar. Tivemos a graça de ouvir e ver os Mutantes, imaginando ter em nós mesmos um pouco daquela ousadia, beleza e liberdade. Ah, a Rita Lee… Linda, cílios e cabelos longos, a indefectível franja, maquiagem perfeita, o corpo esguio de sempre, numa prévia do que viria a ser por décadas, até esta última semana – uma das mais criativas compositoras da nossa música popular, roqueira, multi-instrumentista, escritora, cantora, mulher performática, que se multiplicou em tantas. 

Sou fã incondicional de Rita. Tenho todos os CDs dela, inclusive uma série em vídeo. Na playlist do momento, tem sempre uma música da Rita Lee (ou cantada por ela). Há poucos dias, talvez já com saudades tristemente antecipadas, ouvi, ouvi e re-ouvi “Panis et Circences”: Eu quis cantar/minha canção iluminada de sol/ Soltei os panos sobre os mastros no ar/ soltei os tigres e os leões no quintal/ Mas as pessoas na sala de jantar/ são ocupadas em nascer e morrer. Rita, Arnaldo e Sergio estavam juntos no apartamento de Caetano, no dia (ou noite) em que ele e Gil compunham essa música, “em pingue-pongue”, como ela conta. É o testemunho de um tempo, da Santa Rita de Sampa em irrupção. (Aliás, toda vez que escuto “Panis” acho que a música tem a ver com alguns filmes do Buñuel).  

Estou falando aqui de Rita Lee como história, rastro, como testemunha radical de uma época. De algumas épocas. Muitas. Não há quem não ame suas músicas, as histórias dela, tudo: as letras tão simples e inventivas, o rock genuíno, as baladas de humor-amor-e-sexo. O convite do corpo erótico em dança. Uma presença que por anos seguidos acolheu e contagiou gerações, enfrentando sem medo todas as hipocrisias. Os figurinos, concebidos em grande parte por ela, eram como máquinas de luta. Aparecer no palco de noiva e grávida foi um verdadeiro manifesto contra-burguês. Guerrilheiro, forasteiro, orra meu! 

No dia 8, emocionado e ao mesmo tempo sorridente, um guri de seus 18 anos falou à repórter da TV: “Ela foi a tiazinha mais hardcore que eu conheci em toda minha vida”. Sabe lá o que esse guri quis dizer. Não me incomodei com o tiazinha. Era carinhoso. Acho a fala dele a mais completa tradução de um amor que Rita conquistou e que faz Caetano dizer, ainda emocionado, o óbvio, o que todos nós também achamos: “Ela fez o melhor rock, ela é a maior roqueira do País”.

  O que dizer de uma artista que esteve nos palcos dos festivais, ainda tão jovem, defendendo com os Mutantes “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil? Que teve tantas letras censuradas durante o período da Ditadura? Que compôs pérolas como “Ovelha Negra”, “Mamãe Natureza”, “Agora só falta você”, “Baila Comigo”? Coisa mais linda a história dela com João Gilberto: Rita pensou que era trote o telefonema, até que sacou: do outro lado, “uma inimitável voz cantando ‘Mania de Você’, acompanhada de um inimitável violão”. Só podia ser ele, João. Que beleza sem fim ouvi-la com Milton Nascimento, cantando “Mania de você”. O que dizer dela, que teve “Lança-perfume” gravada em francês por Henri Salvador? Que compôs “Bandido Corazón” para o irmão-gêmeo Ney Matogrosso (aliás, o cupido na história de Rita e Roberto)? “Bandido era eu, mas era ela também”.

Que maravilha Rita no palco com Gal Costa, Elis Regina, Bethânia, interpretando composições suas e performando no palco uma dança feminina, alegre e brincalhona, sobretudo livre. Uma mistura de ironia e beleza, crítica e inteligência, imagens e palavras compondo com nossas vidas, anos a fio. O sucesso, porém, não lhe trazia ilusões. Ela falou mais de uma vez que suas músicas eram “bonitinhas”, “bacaninhas”. Afinal, “tudo já foi feito”. 

Eram os anos 1980, a TV aberta se dava conta, com grande atraso, de que uma nova mulher tinha chegado e precisava ser ouvida. Não importa se era uma questão de marketing, aquilo era um fato. E Rita Lee estava lá. Convidada para fazer a música de abertura do programa TV Mulher, na Globo, Rita criou “Cor-de-rosa choque”. Falou de Eva, menstruação, sexto sentido, gata borralheira, dondoca, sexo frágil. Não provoque, é cor-de-rosa choque. A censura implicou e ela teve que explicar que história é essa de Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra. Rita foi lá e enfrentou a funcionária “mulher-tailleurzinho-cinza-soviético” e conversaram sobre nossas “esquisitices hormonais”…

Um tempo depois, a participação no GNT. “Saia Justa” foi um verdadeiro bálsamo nas quartas-feiras à noite, vinte anos atrás. Com outra maluca-beleza, Fernanda Young, mais Mônica Waldvogel e Marisa Orth, Rita Lee aparecia muitas vezes fazendo tricô, irônica e amorosa, sutil e certeira. Mônica conta que se encantou com a generosidade de Rita na discussão das pautas: “Ela virou a alma daquilo”. 

São muitas as cenas vividas por Rita Lee, para além da sua imensa e vibrante obra musical. Estou falando aqui da relação dela especificamente com as mulheres.  Inesquecível a história de Rita na prisão, surpreendida pela visita de Elis Regina, ajuda fundamental naquele momento. Ali nasceu uma amizade intensa. E um nome para a cantora Maria Rita.Era uma vez uma garota que amava os Beatles e os Rolling Stones, roubava os discos de Elvis Presley, era feliz com Carmem Miranda, Jimy Hendrix e tantos mais. Tropicalista, roqueira, mãe natureza, mãe de Beto, Antônio e João, avó de Arthur e Izabella, mulher e parceira de Roberto de Carvalho por quase 50 anos, Rita nos deixou e ficamos meio desligados, sem sentir os pés no chão. Remexemos sua autobiografia, seus discos e depoimentos, queremos escutar ainda uma vez sua voz suave, sentir seu carinho pelos animais, olhar aqueles olhos azuis e escutar sua palavra. Não vale a pena esperar. Quem sabe roubar os anéis de Saturno por um amor-prosa, um sexo-poesia? Sentir prazer de ser o que se é. Ser meio Leila Diniz. Nem luxo nem lixo, saúde pra gozar no final. Eu não tenho nada pra dizer/ Por isso eu digo / Eu não tenho muito o que perder/ Por isso jogo/ Eu não tenho hora pra morrer/ Por isso sonho.


Rosa Maria Bueno Fischer é jornalista e professora da Faculdade de Educação da UFRGS.

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