Nossos Mortos

Panos rápidos

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Panos rápidos Imagem do ensaio fotográfico "Nu", de Bebeto Alves

Pano Rápido. Final de 1977. O Começo. Na Rua Senhor dos Passos, quase no sopé de uma pequena escadaria, adjacente a um portão com grades de ferro, ficamos nos despedindo, sem pressa alguma, os seguintes beltranos: Nando D’ávila, Carlinhos Hartlieb, Raul Elwanger, Claudio Vera Cruz, Bebeto Nunes Alves e eu. 

Este âmbito dava entrada ao edifício donde ficava o estúdio da gravadora Isaec. O encontro se deu depois de participarmos de uma reunião para tratar da gravação do disco Paralelo Trinta. O meu coração galopava no goto quando, meses antes, desliguei o telefone após atender uma ligação do jornalista Juarez Fonseca. Ele, o fulcro da ideia, com Sepé Tiaraju de Los Santos e Geraldo Flack, havia me convidado para participar desse disco. Metido nesta trupe duma hora pra outra, e agora ali diante dela, vibrava ainda sob aquela emoção, numa mistura doida de embaraço pueril e alegria. 

Conhecia o Bebeto (Grupo Utopia) e o Carlinhos mais pela rádio Continental e por alguns shows coletivos. O Raul, que estava exilado, acabava de retornar aos pagos. O Cláudio pelo grupo Som 4 e o Nando pelo Juarez me falar. Ficamos ali sei não quanto tempo, nos (re)conhecendo, falando como seria o disco, comentando sobre as nossas canções escolhidas, os estilos de cada uma e o futuro da música em Porto Alegre que, justo naquela efeméride, começava a escancarar uma história que jamais poderíamos conjecturar… 

O sol da tarde veio vindo de través pela praça Otavio Rocha, pincelou de laranja nossas indefectíveis bolsas de couro, também os cabelos até os ombros de pelo menos três de nós e mais ainda os nossos olhos abarrotados de cristais de felicidade e anseios. 

Nos despedimos, combinamos algum novo encontro antes de começar as gravações, descemos a breve escadaria, abrimos o portão de ferro, subimos a ladeira e entramos na cidade para sempre… Recordo nítido da última cena desse filme. Se deu bem quase na esquina com a rua da Praia, logo depois que todos se foram. 

Bebeto e eu ficamos conversando. Sem medo do tempo, os dois juvenis, arrebatados de sonhos e dúvidas, um poucadinho antes de pegar os nossos ônibus, eu para o Cristal e o Bebeto acho que para a Medianeira. 

Estava a amizade nascendo plena de quase 50 anos.

Pano rápido. 1978. Convido o Bebeto como guitarrista para o meu show chamado “Milagrezinho”. E ele topa. Naquele chão de cimento do (teatro de) Arena ele ficava em pé, num corner, junto a uma coluna na frente do palco, sob um spot de luz, com o instrumento dependurado nos ombros por um talabarte colorido, bonito, com uma camisa social listrada arregaçada e a palheta entre os lábios… 

Bem na nossa frente, eu e o Grupo Olho da Rua (Suzana Castro, Luiz Antonio Catafesto, Paulo Kieling, Junior Vargas, Oscar Silva e Clovis Holthausen, produção Dedé Ribeiro e direção de Luciano Alabarse). Dava meia-noite, o horário maldito da época, o show começava, ele colocando frases, solos lisérgicos, com distorção e outros sei-lá-quê-pedais de efeitos febris, que se seguiam hipnóticos, sublinhando entre as camadas das melodias, visceral e sensível, e eu vendo, escutando e agradecendo…

Um dia, num dos ensaios antes desse show, mostrei para ele uma música nova que estava fazendo chamada Sertório. Ele disse: – Magrão, isso é um Reggae. E eu: – Régui!? O que é um Régui?!

O novo, esse tal bonde moderno perseguido por incautos e que nesse se querem tantos, para mim, sempre esteve com Bebeto. Um dia alguém perguntou sobre ele. Meu, o Bebeto é Parabólico. Falei disso para ele.  E ele: “Uruguaiana. Ela é cosmopolita: marinheiros cariocas, contrabando, povo árabe, turco, truco, enredos inverossímeis, castelhanos, bugres, a fronteira, a ponte, alguém chegando, alguém partindo – mais pampa e o caralho.”

E tudo isto está na sua pele e nas entranhas da sua música, do seu texto, da sua arte. Dos meus coevos, ele foi o mais artista. Fez música, teatro, cinema, fotografia, rádio e televisão sem nenhum embaraço. Um ARTISTA BRASILEIRO.

Pano rápido. 1983.  Inverno. Bebeto me liga dum orelhão. Ele tinha voltado do Rio para um período em Poa. Era final de tarde. Disse ele: “Tô indo aí na tua casa te visitar”. Eu morava na zona sul, na Tristeza, num apartamento do lado dos meus pais. Pensei, maravilha vamos tomar uma cerveja numa bodega aqui perto de casa pra conversar.  Ele: “Pode ser, mas tava a fim mesmo era de tomar um café com leite com pão e manteiga”. Saí. Comprei pão e leite na padaria. Fomos para o apartamento do meus pais, Dona Eunice e Seu Ulysses, como ele gostava de dizer, e ficamos ali naquela cozinha com uma mesinha de fórmica, nós os quatro, até bem depois da noite chegar, falando da vida, da música e dos nossos destinos… 

Pano Rápido. Início desse século. Nas muitas e boas andanças que tivemos pelo planeta (shows pela Europa com o “Juntos”, com os queridos Gelson Oliveira e Antonio Villeroy), eu ficava admirado por seu nenhum estranhamento, pasmar ou fobia para com as urbes d´além mar. Tu sabe aquele tipo de sujeito que é um cidadão do mundo? Aquele papo de pertencimento de território? Pois ele era esse civil cidadão inteiro. Não se sentia forasteiro em algures algum. 

Lá estava eu seguindo com Bebeto por aquelas, para mim, geografias estranhadas e desconhecidas. Ia com ele, doido de felicidade e seguro, pois estava de braço dado com a sua admirável desenvoltura e da gema da sua coragem.

E não foi só por lá meus gentis, fui de braço dado com ele por toda vida. 

Viva Bebeto Alves!

Pano rápido. 2013. Agosto. Celebração. Plateia lotada. Estamos no Festival de Cinema de Gramado para assistir “Mais uma Canção”. Diz o programa: “Um documentário que mostra a trajetória do músico e compositor Bebeto Alves, um dos mais consagrados nomes da música popular no Rio Grande do Sul”. Continua o texto. “Com direção de Rene Goya Filho e Alexandre Derlam, um longa, com 100 minutos, é uma produção do Núcleo de Especiais da Estação Filmes. A narrativa desenvolve-se a partir da busca do Bebeto pelo conceito de uma música que rompe limites geográficos e estéticos. Em viagem pela Península Ibérica – na região da Andaluzia, em Portugal e pelo Norte da África, o artista entra em contato com as raízes da milonga. Porto Alegre, Uruguaiana (terra natal do artista) e Rio de Janeiro também serviram de locações para o documentário, filmado ao longo de três anos. O longa traz depoimentos de nomes como André Midani, Zuza Homem de Mello, Antonio Villeroy, Juarez Fonseca, Carlos Alberto Sion, Vitor Ramil, Humberto Gessinger, entre outras referências (este que vos fala) da cena musical.”

Segue o texto. “Mais uma Canção” propõe uma reflexão sobre a relação entre a cultura musical periférica e o mainstream, mediada por uma indústria cultural em constante mutação e deve se tornar, sem dúvida, um dos textos visuais mais importantes para o entendimento da música brasileira ao “sul” do país”. 

A grafia das aspas, em “sul”, é minha. 

Fim da sessão. As luzes são acesas. A plateia levanta e aplaude, de pé, efusivamente durante mais de 10 minutos.

Bebeto não pode ir ao evento.

Logo após, fomos todos, a equipe do filme, dezenas de pessoas amigas, inda nublados pela forte emoção, para a casa dos queridos Márcia do Canto e Nico Nicolaiewsky. Num dado momento, no miolo daquela luzidia e serena madrugada, Nico empunha seu acordeom e canta a canção “Raiar” do Bebeto. 

Quem viu, viu. Chorou e cantou junto. 

A exibição desse documentário deveria ser obrigatória em todas as Escolas de Jornalismo Cultural ou afins.  

A amnésia é tarefa da História. 

A indiferença sempre será uma escolha pusilânime. 

Mais uma vez: VIVA BEBETO ALVES!


Nelson Coelho de Castro é músico. Já foi nosso entrevistado na Parêntese.

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