Nossos Mortos

Um boneco para o menino

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Um boneco para o menino
Quando eu nasci era costume das famílias colocarem uma boneca (ou boneco) na porta do quarto da maternidade, anunciando ao mundo se nascia uma menina ou um menino. O ano era 1981, e não havia muitas bonecas pretas disponíveis, assim como não havia muita representação negra positiva em lugar nenhum.  Não havia representação negra. Mas havia o boneco do Pelé. E foi esse boneco aí da foto que minha tia Lili escolheu para representar o meu nascimento, desejando-me boa sorte e pedindo aos céus para que eu tivesse um futuro auspicioso.   Quando os negros de qualquer nação periférica sonham um futuro melhor para seus filhos, um futuro brilhante e cercado de glória, é ao Divino que eles se dirigem, mas é sobretudo a imagem de Pelé que eles projetam. Junto com o futebol, Pelé é o símbolo maior de tudo o que o Brasil sonhou realizar, a concretização de sua potência enquanto nação e a suprema demonstração da força da cultura popular em projetar para o mundo uma sociedade social e racialmente mais justa, capaz de transformar seus conflitos sociais em potência criativa e virtude humana. Pelé foi a encarnação em campo de um país mais decente, a partir do corpo negro afro reluzente.  O mundo seria objetivamente pior para os negros sem Pelé, pois ele deu corpo a um campo novo de possibilidades de ser, um modelo de inscrição dos marginalizados no mundo, pelo seu próprio meio de atuação específica, essencialmente negra.  Existem muitos atletas extraordinários. Mas somente Pelé inventou uma civilização inteira com os pés. Talvez a criatura humana (“humana”?) dotada do corpo mais inteligente de todos os tempos. E o corpo é tudo. Um corpo negro, a quem o mundo – o mesmo mundo que inventou o negro como ser para morte – foi obrigado a se curvar. E o verbo se fez carne. Seu nome: Edson Arantes do Nascimento. Abram caminhos para o rei. Acauam Oliveira é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade de Pernambuco, estuda questões relacionadas a afrodescendência e relações étnicorraciais. É autor da introdução ao livro Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s (Companhia das Letras).

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