Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LXXXII – Anos 60: Napp

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Capítulo LXXXII – Anos 60: Napp Napp em foto de Fernando Gomes

Antes de seguir adiante, vale uma debruçada sobre algumas das figuras de que já falamos.

Por exemplo, os irmãos César e Paulo Dorfman. Começaram juntos, tocando nos festivais de Bossa Nova e integrando o Conjunto Mutirão, que também tinha na formação Renato Axelrud, José Sinowetz, Moisés do Cavaquinho, Ivaldo Roque, Manoel Chotguis e Alberto Grobocopatel. 

De Paulo falaremos mais tarde, porque sua carreira de músico segue ativa até o século XXI. Já César sempre se dedicou mais à arquitetura, desde que se formou, em 1964, pela efervescente Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Em 1976 passou a dar aulas na mesma faculdade – enquanto cursava Composição e Regência da mesma UFRGS, sem chegar a se formar. 


Cesar Dorfman

Mas não foram poucos seus feitos como compositor, dos quais também falaremos.

Vamos então a Sérgio Napp. 

Napp nasceu dia três de julho de 1939, em Giruá, cidadezinha 380 km a noroeste de Porto Alegre. Foi, como já dissemos, o mais gravado dos compositores dessa geração.

Lembram da bossa Pequeno Sol, que ganhara o Festival dos Novos Compositores de 1963 e acabara no Golden Room do Copacabana Palace cantada por Tito Madi no festival Um Milhão por uma Canção? Pois ela acabou sendo gravada duas vezes por Hebe Camargo: no LP coletivo do festival e em seu disco de 1964, Hebe, numa versão que tocou bastante no rádio.

Napp tinha então 25 anos. E, como vimos, com 24 tinha sido gravado por Elis Regina – Meus Olhos, no LP O Bem do Amor – e Marisa Barroso, num disco dividido com o mesmo trombonista e arranjador Astor que havia recentemente trabalhado com Elis. Marisa gravou Vou Ficar com Você no LP Marisa Barroso & Astor.

Em 1968, seria de Napp a canção que representaria o Rio Grande do Sul no III FIC, o Festival Internacional da Canção do Rio. Tempo de Partir seria defendida e gravada por Clara Nunes. A música havia sido uma das vencedoras do II Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular (voltaremos a falar desse festival). E, por isso, selecionada para o FIC. Na edição seguinte do mesmo festival, ele ficaria em quinto lugar com Memórias, parceria com Paulo Dorfman.


O LP do festival

O que mais podia querer um compositor gaúcho de música popular brasileira na segunda metade dos anos 1960?

Pois é. 

Só que daí, nos anos 1970, Napp ficou distante disso tudo, dedicando-se a seu emprego como engenheiro civil no DAER. Seguiu compondo, com parceiros como Cesar Dorfman – com quem fez cerca de 40 músicas -, mas de forma diletante. A carreira de verdade só seria retomada em 1981. 

Mas aí veio forte, e com um clássico instantâneo da canção gaúcha: Desgarrados. Letra dele e música de um dos compositores mais talentosos do cenário da música de raiz do Rio Grande do Sul: Mário Barbará.

A canção vence a 11ª edição do até então mais importante festival de música regional do estado, a Califórnia da Canção Nativa. 

Jair Kobe, hoje conhecidíssimo no Sul como o criador e intérprete do personagem de humor Guri de Uruguaiana, amigo e parceiro de Napp, lembra bem de tudo:

Ele voltou pra cena exatamente em 1980, quando começou a fazer parcerias com o Jerônimo Jardim, Mário Barbará, eu e o Fernando (Cardoso)

Com o Barbará ele fez Desgarrados e Campesina numa sequência. Daí Desgarrados ganhou a California. Foi a primeira vez que a Calhandra de Ouro foi dada para uma linha que não fosse a Campeira. Isso foi o grande trunfo, o grande lance do Desgarrados. E aí no ano seguinte o Napp ganhou de novo a California, com Campesina, na linha de Projeção Folclórica, com o Mário Barbará acompanhado do (Musical) Saracura. Só não ganhou a Calhandra.

Aí ele aparece bem, porque era o maior festival que tinha, a Califórnia.

A partir daí ganhará muitos das dezenas de festivais que se espalharão pelo estado nas décadas seguintes. Além disso, nesse mundo regional, letrará um clássico: Baile de Candeeiro, do gaiteiro Albino Manique. Que, com essa letra, foi gravada até pela dupla Chimarrão com Rapadura, de Hermeto Paschoal e Aline Morena. E, na versão do grupo Canto Livre, de 1985 a 1990 será o tema de abertura do programa regionalista Galpão Crioulo, o mais importante do gênero da TV do Rio Grande do Sul. Também com o Canto Livre, participará do Festivais dos Festivais, da TV Globo, em 1985, com a música Esse Gaiteiro, dele com Fernando Cardoso e Jair Kobe.

A partir de então, Napp será muito mais letrista do que compositor de melodias. E trabalhará com muitos parceiros, ainda que brilhando especialmente ao lado de Barbará: no LP de estreia de Mario, de 1984, quase todas as músicas são dos dois.

E se Mário Barbará e Sérgio Napp serão nomes a partir de então sempre associados. Também serão Sérgio Napp e o grupo vocal Canto Livre.

Que começou, aliás, com a música Canto Livre.

De volta a Jair Kobe:

Em 81 classificamos a música Canto Livre na Vindima da Canção. Juntamos os remanescentes do Coral de Câmara do RS, que havia acabado, fizemos um arranjo parecido com aquela pegada de coral que a gente tava acostumado a fazer e ganhamos. Ali então surgiu a ideia da gente fazer o grupo Canto Livre. O Napp estava presente desde o primeiro momento, foi o grande incentivador. Ele era como se fosse um integrante do grupo, como um grande mentor. Participou conosco todo o período do Canto Livre.

O primeiro LP do grupo, de 1982, foi o independente Canto Livre. Fez muito sucesso, reunindo nove canções de Napp escritas em parceria com dois integrantes do grupo: Fernando Cardoso e Jair Kobe. Daqui a muitos capítulos voltaremos ao grupo.

Em 1987 a bola de Napp está tão cheia que ele consegue um feito raro: gravar um LP onde o artista principal é o letrista, em parcerias com os mesmos Fernando e Jair, mais Cesar Dorfman, Felipe Elizalde, Sergio Rojjas, Pery Souza, Mário Barbará e Pedro Guisso. Natural, o disco, é bancado pela Riocell, e capitaneado pelas baterias eletrônicas e teclados do uruguaio Carlos Garofalli. Numa sonoridade totalmente MPB Anos 1980 canta um time grande de intérpretes: Elaine Geissler, Victor Hugo, o Canto Livre, Lúcia Helena, Grupo Status, Berê, Paulo Gaiger, Pery Souza.

Também a partir dos anos 1980 Napp se destacará como gestor cultural, sendo o responsável direto pelo nascimento da Casa de Cultura Mário Quintana, erguida sobre os quase escombros do então abandonado e deteriorado Hotel Majestic. Napp foi seu sempre elogiado diretor de 1987 a 1991, de 1997 a 1998 e, novamente, em 2003 – sempre em governos do MDB/PMDB. Paralelamente ia escrevendo e lançando romances, livros de poesia e infanto-juvenis. Nas últimas décadas também foi colunista do jornal Zero Hora.

Napp em foto de Adriana Franciosi

No total, teve mais de uma centena de músicas gravadas, uma façanha e tanto para qualquer compositor gaúcho. Uma façanha única entre os de sua geração. Só Desgarrados chegou a mais de 30 versões. 

Nas suas últimas décadas de vida vinha organizando sua obra em variados CDs-Songbooks. Claridade, de 1999, é o primeiro. Seguiram-se Canto Livre – Nos Palcos da Vida (2001), Mala de Garupa (2003, todo de temas de inspiração regional), Angela Jobim interpreta Sergio Napp (2009), Signos (2010, com a cantora Lucia Helena) e Vivências (disco todo interpretado pelo pianista Geraldo Flach e o cantor Victor Hugo, 2010).

Todos lançados de forma independente, vários deles financiados com apoio de leis de incentivo, no que ele chamou de Projeto Resgate.

Napp morreu dia 28 de maio de 2015. Neste mesmo ano o cantor e compositor pernambucano Zé Manoel inclui O Mar, parceria de ambos, em seu CD Canção e Silêncio

No ano anterior, o álbum póstumo de raridades Ele Vive, de Taiguara, incluíra Te Quero, parceria dos dois, provavelmente dos anos 1960. E o porto-alegrense Marcelo Delacroix junto com o uruguaio Dany Lopez haviam regravado Signos, parceria de Marcelo e Napp que Delacroix já havia registrado em seu disco Depois do Raio, em 2006. 

Vale encerrar com o amigo Jair:

O Napp, antes de mais nada, além de ser um grande escritor, era um grande ba-ta-lha-dor. Um cara que realmente ia atrás dos lances. Até cara-de-pau (muito cara-de-pau, inclusive, ehehhe). Ele percebia que o Jerônimo Jardim tinha uma pegada, ele escrevia várias letras pensando no Jerônimo e entregava pra ele. Mário Barbará tinha uma pegada, ele escrevia pro Mário. Eu e o Fernando Cardoso, a gente tinha outra pegada de composição, ele escrevia pra nós. E deixava. Ia largando… Na medida em que a pessoa ia compondo, avisava ele, ele prontamente pegava aquele Corcel II dele e o gravador de rolo, ia na casa da pessoa, não importava a hora, e já gravava! 


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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