Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LXXXIX – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre IV

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Capítulo LXXXIX – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre IV

Antes de seguir, foquemos numa das cabeças do Canta Povo: João Palmeiro, Joãozinho, João da Benga.

Nascido em 3 de abril de 1941 no Rio de Janeiro mas de uma família de gaúchos, viveu em Olinda dos dois aos sete anos de idade, voltou ao Rio e, aos nove, teve uma poliomielite que lhe rendeu a eterna companhia da bengala que lhe deu apelido. Quando seu pai, engenheiro-militar, morreu, ele tinha apenas 14 anos. A família então voltou a Porto Alegre. Estávamos em 1955. Três anos depois chegava a Bossa Nova no apartamento da sua família, no Menino Deus. O primeiro foco local da novidade, uma espécie de versão local do apartamento da família de Nara Leão.

Na virada dos anos 1960 para os 1970, João já tinha sido gravado por Elis em seu terceiro disco, de 1963 (Formiguinha Triste). Depois, liderara com Ivaldo Roque o Canta Povo, de ascensão e dissolução meteórica, justamente por uma treta de João, em 1967. Treta sobre a qual ele só falou em 2021, numa entrevista ao jornalista Paulo César Teixeira, para uma longa matéria publicada no Jornal do Comércio de Porto Alegre em outubro de 2021:

Fiquei indignado quando vi que, em vez de conversar com todos nós, os caras estavam falando só com o Ivaldo. Fui lá e dei um esculacho.

Paulo comenta:

Esses rompantes agressivos não eram novidade para quem conhecia João, que, por sinal, nunca escondeu o fascínio por armamentos, herança da cultura militar da família. (…) Esse aspecto da personalidade, que já o fez brigar (e depois fazer as pazes) com amigos, se expressa em algumas canções, até como arrependimento.

Tendo ou não relação com isso, o fato é que, a partir do final do Canta Povo, João ficou 30 anos sem apresentar-se em um palco, dedicando-se com afinco à boemia e radicando-se gradativamente em Garopaba, SC – que ele começou a frequentar em 1964, quando esta era uma minúscula vila de pescadores sem nem luz elétrica. Lá nunca chegou a ter casa – no máximo uma barraca. Era recebido nas casas dos amigos.



Mas ainda teve a alegria de, em 1969, em parceria com Mutinho, escrever o Samba da Borges, que fez com que a Escola de Samba Praiana, de Giba-Giba, vencesse o último desfile das escolas de samba acontecido na… Borges de Medeiros. 

O jornalista Juarez Fonseca conta:

Eufóricos, eles (e outros tantos) foram comemorar na chamada “ladeira do pecado”, trecho da Rua Caldas Junior entre a Riachuelo e a rua da Praia que abrigava boates e inferninhos como o Bambu e o Queen’s, onde rolavam algumas das melhores jam-sessions. (…) Naquela noite, Lupicínio Rodrigues estava lá. Na condição de representante da Sbacem – Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música, costumava varar as madrugadas em missões de vigilância. Comentou: “Pois é, o Alto da Bronze já tem música, a rua da Praia também, e agora quem tá faceira é a Borges de Medeiros”. Mas não cumprimentou os autores, não abraçou nem o sobrinho. Lupicínio e a nova geração do samba não tinham nenhuma intimidade… “Ele não dava bola pra gente”, diria Palmeiro 40 anos depois. “Acho que tinha ciúmes do Mutinho, que estava sempre conosco.”

Em 1972 João mudou-se de vez para Garopaba, lá ficando por mais de 10 anos, chegando a ganhar o título de Cidadão Honorário da cidade em 2014.

João só teve um disco lançado, o CD Águas Abertas, de 1995. Idealizado pelas cantoras Glória Oliveira e Maria Lúcia Sampaio mais o violonista e arranjador Toneco da Costa, o disco foi viabilizado pelo então coordenador de música da prefeitura municipal de Porto Alegre, Carlos Branco – que muito fez para deixar registrados músicos e intérpretes tão fundamentais quanto desprestigiados da música da cidade.

O show de lançamento reuniu todos os participantes de suas 18 faixas, como o pianista Geraldo Flach, os acordeons de Luiz Carlos Borges e Borghettinho, o cello de Ricardo Pereyra, o flautista Pedrinho Figueiredo, a percussão de Fernando do Ó, o cantor Zé Caradípia, e as cantoras Glória Oliveira, Flora Almeida, Josiane, Adriana e Fátima Gimenez. Parte dele pode ser visto no YouTube

João estava então totalmente esquecido, e o CD foi uma surpresa para todo mundo que o escutou. Começando pelo jornalista Juarez Fonseca, que escreveu: 

Suas músicas, antes de temática urbana e fortemente identificada com Porto Alegre, passaram a falar também do mar e do homem do mar, absorvendo elementos do folclore do litoral catarinense, sem jamais deixarem de ser bossa nova. “A minha base musical está em Tom Jobim e João Gilberto, o que aprendi com eles botei na música dos pescadores”, diz. (…) As suas canções marinhas só podem ser comparadas às de outro mestre, o baiano Dorival Caymmi. Águas Abertas demonstra isso de forma cristalina, com um domínio da linguagem, do sentimento e da intimidade com a vida na praia e dentro de um barco, pescador em sua comunidade, pescador chamando água no remo. João se tornou figura da própria paisagem local, ele e a sua bengala. (…) Ele é brilhante. Apenas o maior compositor que a bossa nova já produziu no Sul do País. Um músico refinado e inventivo, um letrista sensível e talentoso. As suas canções marinhas, principalmente, estão dentre as melhores que já se produziu no gênero no Brasil.

Por fim, na entrevista ao jornalista Paulo César Teixeira, ele declarou:

Eu sou um dos músicos que mais cantou as belezas desta cidade. Lupicínio Rodrigues cantava as tristezas, já eu não queria fazer música de dor de cotovelo. Eu queria cantar as pessoas, as rodas de violão, o pôr do sol, a vida.

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