Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XC – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre V

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Capítulo XC – Anos 60: A era dos Festivais em Porto Alegre V MORDIDA - Graça Magliani, Wanderley Falkenberg , Giba Giba, Sant'anna e Siboney

Em 1967 o Caderno de Sábado do Correio do Povo, editado por Paulo Fontoura Gastal, inventa o espaço fixo para a cultura nos jornais do Estado. Ali aparecerão Sérgio Faraco, Armindo Trevisan, Luiz Antonio de Assis Brasil e Alcy Cheuiche, entre muitos outros. 

Mário Quintana se muda para o quarto 217 do Hotel Majestic em 1968, enfim morando na rua que mais amou. Ali escreverá cinco livros e viverá até ser despejado, em 1980.


Enquanto isso, se o Canta Povo fizera a ponte da nova geração de artistas com os “mais velhos”, agora a vanguarda estava numa onda mais tropicalista. E o destaque em 1968 era A Primeira Manifestação da Peste. O grupo reunia o gaúcho Wanderley Falkemberg com o paulista Zé Rodrix – aquele mesmo, do Sá, Rodrix e Guarabyra (que contaria, anos mais que tarde, que escrevera Casa no Campo no único momento hippie de sua vida: justamente quando morara em Porto Alegre).

A eles se somavam a cantora Graça Magliani, o compositor Luiz Sant’Anna, os percussionistas Neri Caveira e Chaplin. Os figurinos coloridos eram concebidos pela artista plástica Maria Lídia Magliani, irmã de Graça. Pés descalços, muitos textos e muita música. 

Duram pouco, mas fazem muito barulho.

Então, em 1969, juntam-se os remanescentes de ambos os grupos. Do Canta Povo, Giba-Giba. D’A Peste, Wanderley (o único branco), Neri, Graça e Sant’Anna. Soma-se a eles, o percussionista Siboney. Juntos, são o Uma Mordida na Flor. 

Estreiam em São Gabriel, estouram todas as lotações do Teatro de Arena, em Porto Alegre, e passam a fazer uma série de apresentações por bares e palcos da capital. O Mordida na Flor foi a primeira iniciativa de montar uma estrutura profissional de shows nessa geração. Tinham produtor, empresário e até departamento jurídico. Foi bom. E durou quase dois anos.

Em novembro de 1970 são destaque na revista Veja, numa matéria de Tárik de Souza intitulada A Flor do Sul:

A sensação do ano na música de Porto Alegre: o show, ou conjunto, Uma Mordida na Flor – que não deixa de ser o novo nome do breve A Primeira Manifestação da Peste. “Queremos sacudir o coreto porto-alegrense com um ambiente profissional de música de origens nossas”, disse o letrista Sant’Anna, 21 anos, à revista. 

(…)

A movimentação conseguida pelo grupo chegou ao auge há duas semanas. Depois de se apresentar para uma plateia de estudantes no Teatro de Arena local, conseguiu fazer três shows na boate Encouraçado Butikin, uma espécie de templo gaúcho dos mais importantes nomes do Rio e de São Paulo. Com esse bom trunfo nas mãos, Wanderlei Falkenberg, Giba, Sibonei, Neri Caveira, Santana e a cantora Da Graça preparam agora uma série de espetáculos nos clubes gaúchos que ainda pode transformá-los no primeiro produto musical moderno do Sul exportado. 

Pelo menos eles confiam em que seus argumentos musicais trazem razoável dose de inovação: os ritmistas do grupo têm passagem por escolas de samba locais, o autor das músicas e o letrista são universitários e, entre seus instrumentos, eles alternam bongô, afoxê, sininho de maracatu, cuíca e tumbadoras – além de dois violões, um de doze, outro de seis cordas. O resultado é uma mistura de som espacial com inflexões de música regional. E de certa forma também justifica o estranho nome que escolheram, uma espécie de agressão ao desgastado lirismo que exagerava o consumo da imagem poética da flor. Ou ainda, com as próprias palavras do grupo numa linguagem ‘vampiresca’: Procuro agora por você/ cuidado/ sou um cão raivoso/ estou vidrado pelo seu pescoço”. Com produção de Renato Rosa e Luiz Fabretti, levando-a para muitos lugares, a Mordida é mesmo o que há de novo, encerrando o ano em 19 de dezembro no palco do Cine Embaixador, em Gramado, durante a VII Festa das Hortências. 

O então menino prodígio Claudio Levitan lembra:

Naquele tempo, era o momento dos entrincheiramentos, das discussões políticas, gente criando barreiras entre um e outro grupo ou movimento. Eram gavetas e discursos a definirem estilos e gêneros, a “alienação” da Jovem Guarda e a “revolução” do Fino da Bossa, e foram os Tropicalistas que romperam com essa barreira. E esse rompimento também aconteceu aqui, a sua maneira. No Sul, a reação da direita era muito forte, assim como eram muitos os grupos de música que se formaram com o perfil da contestação. Não sei se daria para chamar de Tropicalismo, no sentido do que o Caetano pregava, o que aconteceu aqui. Era mais a coisa dos Mutantes, ou seja, o roquenrol misturado com a música do sul. Foi nessa época que surgiu o MORDIDA NA FLOR (Wanderley Falkemberg e Santana e outros músicos). Era uma banda hippie e gaudéria. Lembro que foi um grupo muito influente para os novos músicos que estavam atentos a construir uma cena local.

Nesse momento, em Porto Alegre, o tropicalismo é epidêmico – o que ajuda a dispersar a geração imediatamente anterior. Se Zé Gomes estava em São Paulo trabalhando na TV Record como orquestrador e regente, a maior parte de sua geração assumira empregos “formais” e/ou se espalhara pelos bares da noite.


Uma nova onda repete a de cinco anos antes (a que levou Elis Regina, Breno Sauer, Manfredo Fest, etc.) e há uma nova migração para o centro do País. 

Em 1968, Carlinhos Hartlieb, de quem muito falaremos, abandona no segundo ano a faculdade de História Natural da UFRGS e vai para São Paulo – estudar Comunicações Culturais na ECA da USP e trabalhar no Instituto Butantã graças a seus profundos conhecimentos em aracnídeos. Logo se juntam a ele a Laís Marques do Canta Povo e um primo de Laís: Hermes Aquino. 

Juarez Fonseca, que contou muito bem essa história, lembra:

Para tentar um lugar ao sol na efervescência musical, Hermes Aquino (…) se manda para São Paulo. Com medo de se perder, pede a Carlinhos Hartlieb que o espere na Estação Rodoviária. Outro que já estava na cidade, estudando, era Celso Marques. Sua irmã Laís chega logo depois. Hermes se instalou na república de estudantes em que Carlinhos morava, Laís foi para o apartamento de Celso. Um dos pontos de encontro dos quatro era a casa de Augusto de Campos, amigo de Celso desde os tempos do Canta Povo. Empolgado com o movimento tropicalista, Augusto os incentiva a compor naquela direção. 

Carlinhos e Hermes participariam com frequência do programa Feira Permanente da Música Popular, na TV Tupi, produzido por Fernando Faro. Hermes e Laís se destacam na fase paulista do FIC (Festival Internacional da Canção) de 1969.

Hermes vence, com a sua Flash. Laís fica em terceiro, com Sala de Espera, dela. As músicas são gravadas e lançadas juntas num mesmo compacto da RGE.


Carlinhos e Liverpool

Dois meses depois, na final do FIC, no Rio, lá estão Laís e Hermes ao lado de Carlinhos e da banda gaúcha Liverpool, com a música Por Favor, Sucesso, de Carlinhos, que havia ganho o Festival Universitário de 1969. Muitas guitarras e… muitas vaias. 

Nenhum gaúcho se sai bem desta vez. 

Hermes mete a viola tropicalista/vanguardista no saco e lança em 1969 um compacto pela RGE com duas canções românticas num clima Roberto Carlos: Triste Melodia e Você Precisa Voltar e Saber.

Os três seguem em São Paulo, e em determinado momento três dos mais importantes grupos teatrais do País tem gaúchos na sua direção musical: Hermes Aquino no Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa; Laís Marques com Antunes Filho; e Carlinhos Hartlieb primeiro na direção musical do Oficina, depois no TUCA, Teatro Universitário Católico, com o qual viaja pela América Latina.

Hermes e Laís são animadoras promessas, apontadas como parte do futuro pelo já respeitado Tárik do Souza, em mais um texto para a então nascente revista Veja, intitulado “Depois de Caetano”:

 Os primos gaúchos reconhecem um parentesco musical com Caetano e Gil em suas primeiras experiências, Flash e Sala de Espera.

(…) 

Com o fracasso comercial das duas músicas, eles parecem ter perdido a ingenuidade inicial. Hermes: ‘Com Flash percebi que estava compondo só para um grupo que já entendia meu código. Agora vou partir para uma jogada mais ampla’. Laís: ‘Agora estou interessada no público que escuta rádio, vê novela. Gravei um bolero e um dixieland com letras de amor, sinto que o momento no Brasil é muito romântico’”. 

O trio acaba se dispersando e todos voltam, em anos diferentes, a Porto Alegre.

Hermes demora mais. Escreve em parceria com Tom Zé a canção Você Gosta?, gravada por Tom num compacto em 1969 e pelos gaúchos da banda Liverpool no único e impressionante LP do grupo, no ano seguinte –  onde há também três músicas de Laís. Falaremos mais disso no futuro volume dedicado ao rock em Porto Alegre


Também vai embora, mas por outros motivos, outro de quem ainda falaremos com vagar: figura de ponta nesse momento, Raul Ellwanger era, além de cantor e compositor, estudante de direito e estagiário no escritório de Carlos Araújo – advogado que seria preso junto com sua mulher, Dilma Rousseff, em 1969. Prisão que foi a gota d’água para que Raul, aos 22 anos, caísse na clandestinidade, integrando o grupo VAR (Vanguarda Armada Revolucionária) – Palmares. Acaba fugindo para o Chile. Voltaremos a ele no capítulo sobre os anos 1970.


Pra fechar, devolvamos a bola pro Juarez Fonseca, que estava lá e assim detalhou esse finalzinho de anos 1960 na cidade:

Como a imprensa ia prestando atenção aos “novos valores”, mais jovens iam saindo da casca. No Clube de Cultura, as rodas de som ganhavam adeptos até entre secundaristas, como Cláudio Levitan, 16 anos, estudante do Colégio Israelita, que se destacara no I Festival Estudantil da Música Popular Brasileira promovido pelo Colégio Bom Conselho em novembro de 1967 (entre os jurados, João Palmeiro e José Gomes). Atento, Osvil Lopes, colunista de música da Folha da Tarde, elogiou o “samba menino” de Levitan. 

Jovens com violões tornavam-se comuns nos bondes e nas ruas.

Formavam-se grupos como o Mutirão e o Quarteto de Roda, com o próprio Levitan no violão, Celso Loureiro Chaves no piano, Juarez Verba na flauta e Beto Meimes na bateria. 

(…)

Na primavera de 1969, foi aberto na Rua Santo Antônio o Aldeia 2, primeiro espaço multicultural (e contracultural) de Porto Alegre. A temporada de inauguração foi com a peça As Criadas, de Jean Genet, dirigida por Miguel Grant – não por acaso um dos sócios do lugar. Parte em uma casa antiga, parte ao ar livre, tinha palco para teatro e música, galeria de arte e bar. 

(…)

Fechando o ano, estreou lá o “happening” Dia Um, com Wanderley Falkenberg, GibaGiba, (os roqueiros) Mutuca, Chaminé e outros músicos do já ex-Succo, tendo como destaque a estreante cantora Da Graça Magliani. No roteiro, músicas do grupo, Beatles, Caetano e Lupicínio (pela primeira vez cantado pela nova geração). Cláudio Ferlauto, ex-líder do grupo Gente Moça e um dos articuladores do Festival da Arquitetura, agora assinando uma coluna na nova edição dominical de Zero Hora, em 21 de dezembro comenta o show com muitas críticas, tipo “texto de lugares-comuns, luzes sem sentido cênico, improvisos desastrados”. Mas: “Salva-se Da Graça, que, livrando-se da ‘falsa baianidade’, será a maior cantora do país. É a melhor voz que eu ouvi em 1969 no Brasil inteiro”.

Também elogiando a cantora, na mesma edição de Zero Hora o colunista Luiz Carlos Lisboa é mais condescendente: “O que vimos no Aldeia 2 é válido, muito válido mesmo, com uma comunicação extraordinária”. Lisboa ficara conhecido como colunista social da Folha da Tarde e era novo em ZH. Trecho de seu comentário: “Irmã da pintora Magliani, Da Graça precisa ainda mais postura, mais desinibição, saber usar melhor o microfone. Porém, fora isto ela é uma revelação, a grande revelação da música popular que está sendo feita no Rio Grande do Sul. E os rapazes animam: Falkenberg no violão, Giba no atabaque, Chaminé no baixo, Moca na guitarra e Bacardi na bateria. Mutuca se encarrega da música estrangeira, o ié-ié-ié, que faz todo mundo subir no palco e dançar com o grupo, bem ao estilo do final do musical Hair (o que foi algo inesperado, como nos confessou Luiz Sant’Anna, diretor do show). Nas mesas, muita gente conhecida e muita mocidade em ‘hippie style’, além dos grupos de teatro, palmas e mais palmas”.

“Hippie style”, anotava Lisboa. Mas os ecos do Festival de Woodstock só chegam mais fortes a Porto Alegre em 1970. 


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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