Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XCIII – O final dos anos 60

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Capítulo XCIII – O final dos anos 60

1968 foi o ano do AI-5, mas foi também um ano-chave para as mudanças comportamentais no Brasil e no mundo.

Cláudio Levitan, então com 17 anos, deu para o jornalista Danilo Jr, em 2008, um belo depoimento de época sobre o momento em Porto Alegre:

Aconteceram os grandes movimentos musicais ao redor do mundo, na música italiana, americana, inglesa, brasileira, latino-americana, francesa. Em cada um desses lugares, os músicos criavam sua “nova canção”. (…) Não dava pra ficar surdo a isso tudo. Mas, ao mesmo tempo, estávamos ainda sob a sombra das ditaduras, política, ideológica e cultural. Era o mundo dividido. A era da guerra-fria, da cortina de ferro, do muro de Berlim, portanto, das divisões e dos medos. Lembro do Flávio Cavalcanti no seu papel fascista de quebrar discos como quem queimava livros.  No meio dessa revolução de costumes pós-guerra, chegamos ao ano de 1968 quando tudo foi contestado e o velho modelo estava a ponto de se rachar. A reação foi violenta e atingiu a graça dos Tropicalistas e de todo o movimento cultura da época.

(…)

O Tropicalismo teve uma grande aceitação entre uma parcela de artistas no Sul muito por esse seu espírito renovador, arejador, desestruturador, que vinha ao encontro das ansiedades da nossa geração que buscava novos caminhos, novas expressões. (…) Essa liberdade de criação nos atraiu fulminantemente. 

(…)

O movimento “gaúcho” continha uma contradição própria que era o de proteger e valorizar o artista e a arte local, e nisso também cerceava a criação. Construíam-se os conceitos do que nos diferenciava e, ao mesmo tempo, nos isolava. Nunca tivemos a mesma facilidade de brincar com a tradição como os baianos fazem. 


Simbólico fim de uma era: em oito de março de 1970 os bondes param de operar. Chegaram a ser 250 operando ao mesmo tempo, a maior frota por habitante do País.

Por outro lado, é inaugurado o Centro Comercial João Pessoa, a primeira iniciativa naquilo que o futuro chamará de Shopping Center

No teatro são os anos de redescoberta de Qorpo-Santo e da efervescência de um novo teatro na cidade, cujos epicentros são o Teatro de Arena, na escadaria da Borges, e o Departamento de Arte Dramática da UFRGS.

Na literatura, está despontando uma geração de escritores que, até os anos 1970, receberá Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Sérgio Faraco, Carlos Nejar, Armindo Trevisan, Luís Fernando Veríssimo, João Gilberto Noll, Lya Luft, Caio Fernando Abreu, Luiz Antônio de Assis Brasil, Tabajara Ruas, Charles Kiefer… quase todos se consagrando nos 1980. 

Ivaldo Roque

Mas a gente não podia fechar o capítulo sobre os anos 1960 sem falar de uma figura que aparece nesta época, terá importância nos 1970, e foi-se embora cedo demais: Ivaldo Roque.

Mais uma vez, comecemos com Juarez Fonseca:

Joãozinho Palmeiro (…) levou um novo amigo para apresentá-lo à turma. Chegado havia pouco de Laguna, chamava-se Ivaldo Roque. Magrinho, de óculos, tímido, cabelo cortado à cadete (estava em Porto Alegre para fazer o CPOR), além de grande violonista Ivaldo era uma fera no cavaquinho e em poucos dias recebeu o apelido de “Pássaro”. A partir daí, Joãozinho, Ivaldo, Zequinha Guanabara e Latuada se tornam um grupo mais ou menos fixo (…). Às vezes Zé Gomes estava junto.

Nascido em 12/02/1939, em Laguna, Ivaldo era filho do Seu Hercílio, barbeiro, violinista, luthier e integrante de jazz bands locais. Já no começo da adolescência, o garoto tocava violão e cavaquinho – choro durante o ano, samba no Carnaval. Mas vocês podem imaginar o quanto de possibilidade havia para um músico que quisesse se profissionalizar na Laguna dos anos 1950…

Foi assim que, aos 18 anos, se mandou pra Porto Alegre, com a garantia de servir ao exército no CPOR. O ano era 1957. A bossa nova estava logo ali.

Quando acabou o curso, não se fez de rogado: começou trabalhando como pedreiro, até arrumar um emprego de linotipista graças ao curso que fez no instituto Pão dos Pobres, em 1958. Trabalha em algumas gráficas e acaba se estabelecendo no jornal Correio do Povo.

Em 1961, aos 22 anos, conhece Zé Gomes, e sua vida muda. Como já vimos, entra como aluno de violão clássico de Zé no Estúdio Zé Gomes (de Zé e sua esposa, Alda) e em seis meses já estava dando aulas. No ano seguinte, com Zé no violino e Wladimir Latuada na flauta, monta um trio que passa a acompanhar muita gente na TV Piratini.

Do Canta Povo já falamos, e é a partir dele que Ivaldo se enturma com Giba-Giba e com a Academia de Samba Praiana – em 1972, com seu samba “Exaltação à Praiana”, ganhará o prêmio de Melhor Música do Carnaval daquele ano. 

Ao mesmo tempo, dá aulas de violão popular “moderno” pra Deus e todo mundo na academia do Zé até que, depois do AI-5, fica impossível para o casal Gomes manter sua academia. Ivaldo volta então a ser linotipista do Correio.

A coisa só começa a melhorar em 1971, com o show Rio Grande do Som, do qual falaremos no próximo capítulo. É ali que ele se encontra com quem será seu mais importante parceiro: Jerônimo Jardim. Juntos, fundam o Pentagrama, de quem também falaremos com vagar no capítulo sobre os anos 1970. 

Jerônimo, Tenisson Ramos, Ivaldo, Loma e Yoli: o Pentagrama

Passa a trabalhar com jingles e trilhas publicitárias e, em 1973, volta a dar aulas, agora no Liceu Palestrina, a mais importante escola de música porto-alegrense dos anos 1970. Começa a compor música na fronteira entre a música de concerto e o regional gaúcho, como “Prelúdio regional” e “Canção da volta”.

Passa a enfrentar um terceiro turno de trabalho, tocando na noite, em duo com o flautista Plauto Cruz no restaurante Vinha D’Alho, sem nunca abandonar o emprego de linotipista do Correio do Povo.

Até que, em 1976, aos 37 anos, os anos no linotipo o aposentam por problemas de saúde relacionados aos produtos químicos utilizados. A saúde começa a comprometer-se, no que a boemia não ajuda.

No final da década de 1970 é um nome relativamente popular, participando de programas na rádio gaúcha e colaborando com a coluna “Ala do Roxo”, sobre carnaval, no jornal Zero Hora. Compõe muito com Jerônimo, e “Moda de sangue”, obra-prima de ambos, é gravada por Elis Regina em 1980 (em seu disco Saudades do Brasil), conseguindo a maior consagração popular da época: entrar na trilha da novela das oito da Rede Globo (no caso, Coração alado).  

Mas a saúde seguiu se deteriorando.

Em 1985 volta a Laguna e morre no ano seguinte, aos 47 anos, de cirrose hepática e anemia.

Fechemos o capítulo sobre os anos 1960 com quem mais ajudou nessa lembrança da Porto Alegre desses anos: Juarez Fonseca. Agora num lindo texto sobre Ivaldo: 

“Linotipista?” Que bicho é esse?”

Quem tem menos de 30 anos, de fato, não pode saber. Chamavam-se linotipos as pesadas máquinas de composição com chumbo, usadas em gráficas e jornais antes do advento da composição eletrônica e da impressão pelo sistema off-set. Nos anos 60 e 70, Ivaldo trabalhou nas oficinas da Companhia Jornalística Caldas Junior. Digitando textos do Correio do Povo e da Folha da Tarde, tinha a segurança e um salário razoável no fim do mês.

Pergunta: como um compositor e violonista com o talento, a experiência e a expressão de Ivaldo Roque não conseguiu tirar o sustento familiar da atividade musical?

Resposta: a música nunca deu bom dinheiro para criadores do tipo renascentistas, feito ele. Que além do mais era um distraído, um tímido, um sujeito sem malícia para se promover. Amigos gostam de lembrar que certa vez, em 1960 e poucos, num show coletivo de bossa nova, o apresentador esqueceu de mencionar seu nome e ele, por pura timidez e modéstia, não entrou no palco para integrar o grupo.

Ivaldo tinha um perfil renascentista porque atuava em muitas posições. Nascido em Laguna, logo se tornaria meio catarinense e meio gaúcho. Mulato de olhos verdes, também era meio branco, meio negro. Quando chegou em Porto Alegre, já estava impregnado do peculiar e fortíssimo carnaval lagunense. Aí foi estudar violão clássico. 

(…)

A obra de Ivaldo precisa ser revisitada. É boa demais para que permaneça no limbo em que se encontra. Cantores em busca de repertório encontrarão nela uma mina preciosa. No dia em que redescobrirem (ou apenas descobrirem) Ivaldo Roque, ficará escancarada a importância que ele tinha. E tem. 


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (20 álbuns e EPs) e doutor em Lupicínio pelas Letras da Ufrgs. Publicou Elis, uma biografia musical (arquipélago, 2015) e tá no prelo Porto Alegre, uma biografia musical, Volume 1, reunindo as primeiras colunas publicadas aqui.

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