Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XCV – Os Anos 70: Almôndegas

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Capítulo XCV – Os Anos 70: Almôndegas

Ainda estamos em 1971, ano dos mais duros da ditadura civil-militar no Brasil. Mas talvez nem tanto para um bando de amigos que viera fazer faculdade em Porto Alegre, vindos todos de Pelotas ou Jaguarão – cidades a, respectivamente, 243km e 383km ao sul da capital. 

De Pelotas eram os irmãos Kleiton (23/08/51) e Kledir Alves Ramil (21/01/53) e Eurico “Quico” Guimarães de Castro Neves (01/07/51). De Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, vinha um primo dos Ramil: Pery Alberto Alves de Souza (13/04/53). 

Quase adolescentes, tinham entre 18 e 20 anos de idade.

A gente já os conhece do Musipuc e da I Mostra de Música de Porto Alegre.

Pois some-se a isso a classificação de Quadro Negro, canção tipicamente MPB pós-tropicalista de Kledir, no I Festival Universitário Catarinense da Canção de Florianópolis, o Fucaca.

Foram. Viram. Venceram.

Sucessinho, festa e mais festa, e as maiores perspectivas possíveis – que, naquele contexto, se resumiam a pouco mais do que “ano que vem, vamos de novo?!”

Perspectivas cumpridas: ano novo veio, de novo foram.


Só que no intervalo desses doze meses muita coisa houve. A primeira foi um incrível inchamento da turma. O quarteto inicial virara o epicentro criativo de um considerável amontoado de hippies, gregários por definição. Estavam todos sempre em bando, rolando um som na casa de um ou outro – muitas vezes na casa dos pais da Liane Klein (integrante/vocalista da patota), Bruno e Laura. Como bem lembra o Quico:

“nos tratavam como filhos. Costumávamos ficar até o amanhecer em sua casa, tocando, cantando e contando histórias. Não tenho dúvidas – e certamente os demais Almôndegas também pensam assim – que o convívio com aquela família maravilhosa foi um dos fatores que tanto nos uniu. Muitos anos depois, a gente costumava brincar que a casa da Liane na Chácara das Pedras está para o movimento musical da época como o apartamento da Nara Leão em Copacabana para o nascimento da Bossa Nova.

No meio disso, viajavam no interior de si próprios, esforçavam-se para aplicar o ideário do amor livre, faziam meditação transcendental e dedicavam parte – importante – do seu tempo à exploração dos mais alucinógenos e/ou relaxantes mistérios da botânica. 

Kleiton:

Uma sensação curiosa que eu sentia era uma certa discriminação em relação ao Almôndegas pelo pessoal mais “doido”, que nos olhava como jovens mais comportados (mauricinhos). Na verdade eu desfrutava de dupla personalidade (ou várias personalidades) porque, ao mesmo tempo em que era um ser (como a maioria do nosso grupo) que alimentava ideias cartesianas e objetivas em tudo que fazia, também possuía um lado doido que experimentava drogas e queria viver tudo sem limites. Porém as coisas ficavam equilibradas na balança. A formação de minha personalidade em Pelotas, onde me tornei, sem falsa modéstia, um estudante brilhante, um pesquisador e observador obsessivo (ouvido interno musical refinado com o estudo do violino), tornou-me um buscador eterno de resultados originais e muito seguro do que buscava (ou do que não queria fazer). Essa percepção das coisas era aberta, livre, onde eu, sem preconceitos, sentia-me totalmente identificado com as loucuras dos pirados mais geniais criadores de Porto Alegre, fossem eles drogados ou não. Certamente eu era mais louco que todos os loucos juntos das bandas de rock porto-alegrenses.


Retomemos: estamos agora em 1972, pegando de volta a estrada rumo a Florianópolis.

Ninguém se deu nem ao trabalho de contar quantos eram. Só quando chegaram ao palco do II Fucaca é que sentiram a dificuldade em administrar 24 pessoas se acotovelando com seus instrumentos. De alguma forma deu certo, porque levaram o segundo lugar e ainda o prêmio de melhor letra para a milonga estilizada que vira uma espécie de chacarera/malambo Teia de Aranha, do Kledir. 

Mas era óbvio que aquele amontoado de gente não poderia ser um grupo. Se quisessem seguir teriam de organizar aquela zona.

Gilnei: 

Nos tempos dos Musipucs nem se cogitava em formar um grupo fixo. Era um bando de gente no palco, interpretando as músicas de uns e outros.

Pois é. 

Dos vinte amigos, o quarteto original escolheu um, jaguarense como Pery Souza: o percussionista Gilnei Ferreira da Silveira (09/11/50).

Gilnei, Pery, Kledir, Quico, Kleiton: a primeira formação.

Pra outro membro ativo do bando sobrou um acúmulo de função. Segundo o Quico, Nassif Nagib Muhr, o “turco”, virou “empresário, road manager, confessor, diretor financeiro, segurança e, sobretudo, um amigaço”.


É nesse momento que, com um coração beatle, um pé no pós-tropicalismo caetânico e outro na música regional, Kleiton, Kledir, Pery, Quico e Gilnei passam a definir um conceito que, meio século depois, segue soando tão moderno quanto atemporal. Nas últimas décadas, o que chamamos de MPB, virou, mexeu, eletrificou-se, deseletrificou-se, olhou pra trás e… hoje comporta sem nenhum estranhamento um grupo baseado, como os primeiros Almôndegas, em vozes, violões e percussão.

O sucesso viria de um tamanho inesperado, mas, visto de hoje, compreensível: antes deles, nos anos 1960, havia os festivais gaúchos de MPB e o rock. Pouco depois, nessa primeira metade dos 70, parte significativa da nova geração surgia imersa na ambição de soar nacional – o melhor exemplo era Fernando Ribeiro.

Mas o Almôndegas não era nada disso. 

Sem dar-se conta da revolução embutida no conceito, os rapazes acreditavam na possibilidade de fazer uma música que fosse inequivocamente gaúcha, mas ligada ao mundo. Ok, não estavam sós, nem eram os pioneiros – mais ou menos contemporâneos havia outros de que falaremos: os grupos Pentagrama (mais pra MPB, de quem Gilnei era fã) e Utopia (de Bebeto Alves, mais pro folk rock progressivo), Claudio Levitan – nos shows Amelita, Cabeça, Tronco e Membros e Em Palpos de Aranha – e Carlinhos Hartlieb – com sua programática visão psicodélica do pampa.

O que fazia diferença é que, perto do Almôndegas, todos esses transitavam num universo menos popular e assimilável – mais ou menos underground, conforme o caso. Já os guris “de Pelotas” eram solares, cheios de carisma, pops, afáveis, simpáticos. Saudavelmente classe média universitária – e, é claro, talentosos. 

Tocando com a mesma naturalidade bossas, milongas e rocks rurais. 

Uma verdadeira… almôndega. 

E então chegamos a 1974. 

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