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Richard McGuire: “Aqui”, em 2021

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Richard McGuire: “Aqui”, em 2021

Lembro que no início da pandemia muitos comentavam sobre a experiência de aglutinar, no mesmo ambiente, o aconchego do lar e a estafa do trabalho, o lazer e a obrigação, o cotidiano da vida doméstica e a necessidade de reinventar esse espaço para si e para a família. Todos vivemos um pouco disso nos meses em que aprendemos a lidar com a covid-19. De repente, muito do que conhecíamos, muito do que constituía a nossa sociabilidade foi modificado. Mais de um ano depois, mesmo diante de flexibilizações e relaxamentos (por necessidade ou por pura irresponsabilidade), essa ainda é uma experiência que se mantém para alguns – que precisam, assim, ressignificar tal espaço cotidianamente. Nesses cenários do nosso existir pandêmico, vivemos muitas possibilidades e emoções simultaneamente. E é a partir desse olhar que afirmo que Aqui, de Richard McGuire, é uma das obras artísticas que ajudam a compreender em certos termos a experiência do isolamento social que vivemos nesse período. Não só isso, mas também a própria ressignificação da experiência humana a partir da relação entre espaço, tempo e indivíduo.


Página dupla de Aqui, de Richard McGuire.

Escrevo este texto no momento em que passo para uma nova fase da vida pandêmica: como professor, trabalhei intensamente de forma remota ao longo desse período, mas sempre da minha própria casa; justamente depois de uma aceleração nos números da covid, em meio a um cenário de incertezas acerca da vacinação, volto à sala de aula propriamente dita de forma presencial, com todos os segmentos do ensino juntos de uma só vez. As telas e as câmeras, porém, seguem lá, filmando e projetando, construindo outras simultaneidades e sendo, agora, itens indispensáveis para uma modalidade de ensino que vem sendo chamada de “híbrida”. 

Antes, porém, na modalidade 100% online (um privilégio para a minoria dos estudantes brasileiros), a casa foi o único refúgio e espaço de trabalho possível para os docentes e para os discentes: ela virou sala de aula, estúdio, espaço para reuniões, cursos, seminários, palestras, encontros síncronos e assíncronos (esses conceitos que intoxicaram o cotidiano do magistério nos últimos meses). Todavia, a casa também virou o lugar da “hora do intervalo”, da “pausa para o cafezinho”; e fora do cotidiano do trabalho – para quem pode –, o lar virou cinema, arquibancada, assento de show, mesa de bar, lugar da resenha com os amigos, dos encontros familiares, espaço para um jantar especial com o companheiro ou com a companheira. Tudo no mesmo espaço: o espaço do “aqui”.

Quem conhece Aqui, a obra de Richard McGuire, talvez concorde com a conexão que estou tentando fazer. Talvez não. Para quem não conhece, vou tentar explicar. Ressalte-se primeiramente que não se trata de uma obra sobre confinamento. Tampouco sobre uma doença contagiosa, perigosamente transmissível e letal. Não: trata-se de uma graphic novel que fala, basicamente, de memória, promovendo uma espécie de ensaio sobre a questão da forma e do olhar nos quadrinhos.

Desde que surgiu, a HQ de Richard McGuire tornou-se uma obra que movimentou o meio. Publicada numa primeira versão curta em preto e branco na célebre revista Raw em 1989, transformou-se em uma graphic novel em 2014 (esta lançada no Brasil em 2017 pela editora Companhia das Letras e com tradução de Érico Assis). A premissa é a mesma em ambos os casos, mas consideravelmente expandida na versão mais recente: apresentar as vivências e experiências (físicas ou sensoriais, humanas ou não) acumuladas num mesmo espaço ao longo de milhões de anos. Literalmente, milhões de anos e exatamente no mesmo lugar, que ora é o canto de uma casa habitada por várias gerações de pessoas, ora é uma floresta; ora é um lar suburbano, ora é apenas um pedaço do terreno de uma outra casa que, aparentemente, não existe mais nos dias de hoje; o que era um lugar habitado por indígenas fora antes um local rodeado de animais pré-históricos; no futuro, será algo tecnologicamente avançado; no passado, um imenso “vazio”.

E por aí vai…

É difícil explicar o que é a experiência artística de ler Aqui – é preciso ver: abrimos o livro e uma página dupla revela o ângulo de uma casa; na página seguinte, junto à folha de rosto, a legenda indica o ano de 2014; logo estaremos vendo esse mesmo ângulo em 1957, para que mais adiante vejamos esse mesmo local (que já não é o mesmo, portanto) no ano de 1942. As páginas vão passando: em 1957, um pequeno quadro se sobrepõe como que para ressaltar um detalhe do espaço – há um gato passando pela sala, mas em 1999; numa nova página dupla, estamos em 1623 e não há casa alguma, somente árvores; um outro quadro se abre aí, num outro lugar da página – é um detalhe daquela mesma cena de 1957, daquele mesmo espaço doméstico, ora em simultaneidade com o cenário de 1623; abre-se mais uma vez o pequeno quadro do gato em 1999 – agora são três tempos simultâneos. A seguir, ao longo do livro e em períodos distintos, muitas outras páginas duplas mostram a ausência daquela casa que vimos no início – 1766, 3450 a. C., 2113… 


Sequências de páginas da versão em graphic novel de Aqui.

Lendo isso, pode parecer que a obra não tem qualquer encadeamento narrativo e que é tudo pura fragmentação. Não seria um raciocínio plenamente correto. Os conceitos de tempo e de espaço são o próprio centro da narrativa; eles são, portanto, os “protagonistas”, por assim dizer. Porém, a lógica não é tão abstrata quanto parece. Claramente, há linhas de enredo na HQ que vão sendo costuradas aos poucos. Por outro lado, elas são também abandonas aos poucos, mas muitas se conectam por meio de falas, situações, ideias e imagens. Essas conexões são, em si, a própria narrativa proposta por McGuire – são elas que dão a dimensão “romanesca” da obra.

A artista e pesquisadora Cátia Ana Baldoino, premiada na última edição do Troféu HQ Mix com uma dissertação de mestrado que analisa a primeira versão de Aqui, salienta que, nela, a participação do leitor é exigida “na máxima potência”. Em sua análise, há dois valores simultâneos e um tanto contraditórios na HQ: 1) o ângulo fixo a partir do qual se projeta o olhar sobre os acontecimentos e 2) a multilinearidade da leitura dos quadros. “A sequencialidade é distorcida, é fragmentada, e a estrutura dos quadrinhos é completamente subvertida”, afirmou a pesquisadora no colóquio de divulgação dos acadêmicos premiados com o HQ Mix em 2020. A mesma tensão é mantida na graphic novel, mas com um elemento intensificado: o espaço da(s) página(s). 

Se a leitura dos quadrinhos, em geral, depende demasiadamente da relação com esse espaço, em Aqui isso é extrapolado, não só porque o conceito é chave para a própria proposta narrativa da obra, mas também porque os diferentes tempos que aparecem simultaneamente nas páginas eventualmente exercem função de contraponto. Por exemplo: uma memória de 1959 aparece num filme projetado na sala da casa em 1973; enquanto uma mulher prepara a tela em que será projetado esse filme, um pintor organiza seus materiais para fazer um retrato ao ar livre de outra mulher em 1870; um mesmo grupo de crianças é fotografado em 1962, 1964 e 1969 – até virarem adultos sendo fotografados em 1979 e 1983;  alguém fala do perfume de uma pessoa em 1971, e em 1953 um homem fala sobre cheiros; uma mulher toca piano em 1964, enquanto três quadros aparecem sobre a página dupla com garotas que parecem dançar ao som dessa mesma música em 1932, 2014 e 1993. Há também um tempo cíclico: a rotina de um casal em 1959 já era a mesma em 1958; uma árvore de Natal é montada em 1953, outra árvore de Natal é montada em 1965, outra em 1960. Cátia Ana Baldoino lembra, ainda, que na graphic novel de 2014 a dinâmica do espaço não se dá só na composição dos quadros ou nos movimentos de leitura dos mesmos, mas também na tridimensionalidade apreendida no próprio objeto livro, que faz com que o ângulo da casa que vemos ao longo das páginas seja posto exatamente na linha que divide a costura do material.


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Trecho da HQ Here original, de 1989: 6 páginas de um experimento narrativo que marcou as histórias em quadrinhos.

Em Aqui, acompanhamos o passado e o futuro se sobrepondo, com o tempo produzindo intensas transformações, fazendo com que um mesmo espaço e um mesmo ponto de vista nunca sejam, na verdade, os mesmos. A presença humana atravessa o histórico de um ambiente, mas o que intriga (e, de certa forma, angustia) é que essa presença parece ser efêmera, pequena até, diante de toda a grandiosidade que a relação tempo/espaço passa a ter. Lembramos, inevitavelmente, das palavras de Caetano Veloso: “Compositor de destinos / Tambor de todos os ritmos / Tempo, tempo, tempo, tempo / (…) Por seres tão inventivo / E pareceres contínuo / Tempo, tempo, tempo, tempo / És um dos deuses mais lindos”

Penso, por outro lado, que a graphic novel de Richard McGuire também produz outra tensão igualmente intrigante nesse sentido: por mais que o tempo e a memória mostrem suas forças na obra quase como entidades autônomas, indiferentes às convenções estabelecidas em torno delas, elas existem por meio da experiência da própria vida. Não só da vida humana: da vida como um todo. Sem ela, afinal, como constituir memória? Como dar sentido ao tempo? Como dar significado ao espaço? É possível isso tudo existir sem a vida? Na obra, como vimos, aparecem situações cíclicas, mas o que mais vemos, essencialmente, são as transformações que se dão por meio de vivências acumuladas. Sem a vida aparente, até há beleza ao longo da história – como algumas páginas mostram, inclusive; no entanto, há um grande vazio. Parece que aí McGuire quer dizer algo que não só é universal, como também é, ironicamente, atemporal.

Simultaneidades em Aqui:de 3450 a.C. a 2016, passando por outras três datas e mais três momentos distintos no ano de 2014.

Na primeira vez em que li a obra de McGuire, fiquei encantado com sua proposta, mas foi um encantamento que só confirmou impressões e comentários críticos que já havia lido. Era uma obra vanguardista, sem dúvida, especialmente considerando seu histórico, que remontava ao ano de 1989. Havia sido a relação com a forma que me encantara. E só.

Contudo, numa segunda leitura – em meio ao contexto de isolamento social – a obra reposicionou seu significado para mim: convivendo com a sobreposição de experiências e vivências dentro do meu próprio lar, a proposta conceitual de McGuire teve outro impacto; de alguma maneira, ela ecoou o zeitgeist daquele momento, mas, para além disso, penso que esse foi o gatilho necessário para que eu finalmente compreendesse sua real potência, passando a também ser, na minha opinião, uma referência obrigatória em outros sentidos – para além do que vem a ser apenas uma grande obra em quadrinhos. De forma um tanto catártica, foi a experiência pandêmica que me propiciou esse contato tão intenso com Aqui. Paradoxalmente, essa conexão transformou meu olhar não apenas sobre a própria obra, mas também sobre o meu cotidiano. Vi, assim, que mesmo um contexto de aparente saturação, afinal, pode ter algo muito importante a revelar sobre nós mesmos. 

Espero, agora, que fora do mundo da narrativa gráfica possamos, ao menos, reinventar nossos espaços a partir de outras bases e necessidades para além das vicissitudes pandêmicas, pois existiremos ainda de muitas outras formas para além do tenso momento atual. Por ora, ficamos por aqui mesmo – seja onde (e quando) for.


Vinícius Rodrigues é professor de Literatura, mestre e doutor em Letras pela UFRGS, sempre estudando quadrinhos e humor gráfico. Sua tese de doutorado venceu, em 2020, o Troféu HQMIX, o prêmio mais importante do segmento dos quadrinhos no Brasil. É autor de diversos artigos e contribuições em livros, em revistas acadêmicas e na imprensa. [email protected].

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