Parêntese | Poesia traduzida

Rafael Brunhara: Safo: um hino e três canções de lembrança

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Rafael Brunhara: Safo: um hino e três canções de lembrança Safo poetou entre o fim do século VII e início do VI a.C. Nasceu na ilha de Lesbos e viveu em Mitilene, sua principal cidade. Dizem muitas coisas sobre ela: que foi uma professora que preparava meninas para o casamento; uma sacerdotisa de Afrodite; ou ainda uma mestra das danças corais. Nunca saberemos. Seus versos de amor a meninas tornaram-se a parte mais conhecida de sua poesia. O tempo a tornou célebre: Platão a considerou a décima Musa. Na Biblioteca de Alexandria, no séc. II a.C., foi canonizada por estudiosos como um dos nove poetas gregos mais importantes – todo aquele que queria ser poeta deveria lê-la. Em Roma, Catulo e Horácio emularam seu estilo. Para este último, sua poesia era sagrada. Hoje, seu nome e a ilha que habitou designam termos da sexualidade humana, traduções a resgatam e relíquias de sua obra poética insistem em ressurgir nas areias do Egito. Safo é imortal.  A lírica de Safo é extremamente melodiosa – os gregos viam em seus ritmos e assonâncias um poder sobrenatural, próprio dos encantamentos. É permeada pelo desejo, pela lembrança, pelos embates de amor e pela dor de sua perda. Mas o que nos restou é fragmentado, lacunar, e mesmo a música que a acompanhava originalmente se perdeu irremediavelmente. Todos os poemas escolhidos para esta breve seleta narram a dor do desejo irrealizável. Ora essa dor assume forma divina, emoldurada num chamado a Afrodite; ora Safo a explica recorrendo ao mundo do mito; ora é o relato de uma amante serena, que recorda, com coração grato, os momentos felizes que viveu com a amada. Chamo a atenção para o primeiro fragmento abaixo (31):  não é exagero dizer que ele inaugurou a lírica ocidental. O poema encanta pelos seus oxímoros: Safo descreve, com extremo autocontrole, os sintomas de seu próprio descontrole amoroso. Este descontrole faz seu próprio corpo e seus sentidos colapsarem e serem alvo de forças tão contraditórias como o fogo e a água. Sua língua se rompe, mas seus versos são, e continuam, muito eloquentes.  Fragmento 31 – “Par dos Deuses…”  Parece aquele igual aos Deusesser, o homem que em tua frente se senta e de perto doce fa--lar te escuta atento  e sorrir com desejo — isso tudo eu jurofaz meu coração no peito esvoaçar pois te olho e tão logo falar eu já não posso,  mas rompe-se a língua e leve logo sob a pele lavra um fogo; com meus olhos nada vejo fremem meus ouvidos  água de mim se esvai, tremor toma-me toda; mais verde que relva estou e bem perto de morrer pareço eu mesma. Mas tudo se deve ousar … Fragmento 1 – “Hino a Afrodite”  Afrodite imortal em flóreo véu fulgente,filha de Zeus, tecelã de enganos, suplico:nem com ânsias nem com dores domessenhora, o meu coração, mas vem aqui, se alguma vez antesouvindo minha voz de longeme atendeste e a casa do pai deixandoáurea vieste atrelado o carro: belos te trouxeramágeis pardais sobre a terra negra,num denso turbilhão de asascruzando o ar, e logo chegaram. E tu, venturosa,sorrindo em teu […]

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Safo poetou entre o fim do século VII e início do VI a.C. Nasceu na ilha de Lesbos e viveu em Mitilene, sua principal cidade. Dizem muitas coisas sobre ela: que foi uma professora que preparava meninas para o casamento; uma sacerdotisa de Afrodite; ou ainda uma mestra das danças corais. Nunca saberemos. Seus versos de amor a meninas tornaram-se a parte mais conhecida de sua poesia. O tempo a tornou célebre: Platão a considerou a décima Musa. Na Biblioteca de Alexandria, no séc. II a.C., foi canonizada por estudiosos como um dos nove poetas gregos mais importantes – todo aquele que queria ser poeta deveria lê-la. Em Roma, Catulo e Horácio emularam seu estilo. Para este último, sua poesia era sagrada. Hoje, seu nome e a ilha que habitou designam termos da sexualidade humana, traduções a resgatam e relíquias de sua obra poética insistem em ressurgir nas areias do Egito. Safo é imortal.  A lírica de Safo é extremamente melodiosa – os gregos viam em seus ritmos e assonâncias um poder sobrenatural, próprio dos encantamentos. É permeada pelo desejo, pela lembrança, pelos embates de amor e pela dor de sua perda. Mas o que nos restou é fragmentado, lacunar, e mesmo a música que a acompanhava originalmente se perdeu irremediavelmente. Todos os poemas escolhidos para esta breve seleta narram a dor do desejo irrealizável. Ora essa dor assume forma divina, emoldurada num chamado a Afrodite; ora Safo a explica recorrendo ao mundo do mito; ora é o relato de uma amante serena, que recorda, com coração grato, os momentos felizes que viveu com a amada. Chamo a atenção para o primeiro fragmento abaixo (31):  não é exagero dizer que ele inaugurou a lírica ocidental. O poema encanta pelos seus oxímoros: Safo descreve, com extremo autocontrole, os sintomas de seu próprio descontrole amoroso. Este descontrole faz seu próprio corpo e seus sentidos colapsarem e serem alvo de forças tão contraditórias como o fogo e a água. Sua língua se rompe, mas seus versos são, e continuam, muito eloquentes.  Fragmento 31 – “Par dos Deuses…”  Parece aquele igual aos Deusesser, o homem que em tua frente se senta e de perto doce fa--lar te escuta atento  e sorrir com desejo — isso tudo eu jurofaz meu coração no peito esvoaçar pois te olho e tão logo falar eu já não posso,  mas rompe-se a língua e leve logo sob a pele lavra um fogo; com meus olhos nada vejo fremem meus ouvidos  água de mim se esvai, tremor toma-me toda; mais verde que relva estou e bem perto de morrer pareço eu mesma. Mas tudo se deve ousar … Fragmento 1 – “Hino a Afrodite”  Afrodite imortal em flóreo véu fulgente,filha de Zeus, tecelã de enganos, suplico:nem com ânsias nem com dores domessenhora, o meu coração, mas vem aqui, se alguma vez antesouvindo minha voz de longeme atendeste e a casa do pai deixandoáurea vieste atrelado o carro: belos te trouxeramágeis pardais sobre a terra negra,num denso turbilhão de asascruzando o ar, e logo chegaram. E tu, venturosa,sorrindo em teu […]

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