Reportagem

Cenas da vida em defesa da Constituição

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Cenas da vida em defesa da Constituição Jair Krischke

*Fotos de Tânia Meinerz

Há 60 anos, o Rio Grande do Sul – e principalmente Porto Alegre – se mobilizava, em espírito e armas, para defender a Constituição Federal e garantir a posse do vice-presidente João Goulart, o Jango, diante da renúncia do presidente Jânio Quadros, no dia 25 de agosto. A capital gaúcha tornou-se o epicentro da chamada Campanha da Legalidade, sob o comando do governador Leonel Brizola. O episódio consagrou nomes de políticos e de militares responsáveis por um dos momentos mais emocionantes da história do Estado no século 20; a campanha, porém, de alguma maneira, interferiu na vida de milhares de pessoas, simpatizantes ou não da causa. Nessa reportagem, que continua sábado na edição 91 da Parêntese, resgatamos cenas protagonizadas por cinco personagens anônimos em agosto e setembro de 1961. Distantes de decisões palacianas, esses homens e mulheres, voluntariamente ou não, mergulharam no turbilhão dos acontecimentos.

Alto-falante na Andradas

Aos 82 anos, Jair Krischke é reconhecido pela atuação à frente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos e contra as ditaduras surgidas na América Latina desde meados da década de 1960. Em 1961, no entanto, Krischke era um jovem que trabalhava com o pai num comércio na Rua dos Andradas, a Rua da Praia, e morava na Avenida Pernambuco, no Quarto Distrito. Estimulado pelo ambiente familiar, ele vivia a aproximação com a política desde cedo – recorda, por exemplo, de participar, aos sete anos, de comícios pela redemocratização, em 1945, “agarrado ao casaco de Alberto Pasqualini [advogado e político trabalhista], para não me perder” e de colar cartazes do candidato a deputado estadual Nilo Ruschel, pelo PTB, nas escadarias do viaduto da Avenida Borges Medeiros. “Eu simpatizava com o Brizola, e, quando começou o episódio da Legalidade, me juntei com meu irmão mais novo, Jorge, e perguntei ‘Vamos resistir?”

A resistência fraternal resultou, principalmente, na instalação de alto-falantes na Rua da Praia, nas proximidades do antigo prédio da Companhia Força e Luz, onde hoje se encontra o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, no Centro de Porto Alegre. “Meu irmão conseguiu essa sala, com janelas para a Andradas. Tínhamos umas cornetas, um toca-discos e um microfone. No gogó, convocávamos as pessoas e também reproduzíamos as transmissões da Rede da Legalidade, aproximando o microfone de um rádio”, relata Krischke, referindo-se à rede de emissoras formada por Brizola para transmitir seus discursos. Ele salienta que a localização era excelente. Na frente, havia o movimentado Café Viana. Muito próximo, na esquina da Rua General Câmara com a Rua da Praia, era o “Largo da Merda” – assim chamado pela qualidade das conversas que ali se davam –, um dos principais pontos de encontro da cidade. Krischke não lembra como conseguiram a sala: “Eu acho que meu irmão, morto há mais de quinze anos, tinha uma relação de amizade com o proprietário do prédio”. 

Em outro momento da campanha, Krischke estava entre os que foram retirar um revólver calibre 38 e uma caixa de munição no “Mata-Borrão” – oficialmente, o Pavilhão de Exposições do Governo do Estado, na esquina da Rua Andrade Neves com a Avenida Borges de Medeiros, no Centro, belíssimo prédio construído em 1958 e demolido no final dos anos 1960. Três mil revólveres foram requisitados à indústria Taurus, com munição da Companhia Brasileira de Cartuchos. A pessoa contemplada com a arma recebia uma rápida instrução de manuseio e estava incluída entre aqueles dispostos a defender o Palácio Piratini. Krischke, que não chegou a passar pelo “treinamento”, pois sabia atirar, ainda hoje guarda uma dúvida consigo: “O que faríamos quando acabasse a pouca munição que nos havia sido entregue?”


Comando na ordem unida

Carmen Campetti e Paraguaçu Guedes da Silveira

Nascido em Dom Pedrito, na Campanha, sudoeste do Rio Grande do Sul, o economista e bancário Paraguaçu Guedes da Silveira, 83 anos, estudou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército de Porto Alegre, hoje Colégio Militar, antes de ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras. Acabou abandonando o curso superior do Exército e retornou para a Capital, onde logo viveu seus momentos na Campanha da Legalidade. No início, dedicava-se antes de tudo a acompanhar a movimentação de soldados da Polícia do Exército, cujo quartel estava sediado na esquina da Rua Duque de Caxias com a Avenida João Pessoa, antes da construção do Viaduto Loureiro da Silva. O vai-e-vem era observado desde um apartamento na Rua André da Rocha, onde o irmão, Ítalo, residia.

Em caminhadas pelo centro da cidade, Silveira também assistiu, na noite de 27 de agosto, dois dias depois da renúncia de Jânio Quadros, a chegada de tanques M-3 Stuart às imediações da Usina do Gasômetro. Naquele momento, o general José Machado Lopes, comandante do III Exército, ainda permanecia em cima do muro sobre apoiar a Legalidade ou utilizar a força para prender Brizola, como lhe havia sido ordenado pelo Ministério da Guerra. 

Carmen Campetti

A aproximação mais efetiva de Silveira com a campanha se deu nos corredores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a parceria de colegas como o ex-prefeito e ex-vereador Guilherme Socias Villela e o arquiteto Newton Burmeister. “Burmeister e eu ficamos encarregados de preparar 30 homens, cada um. Ficávamos executando ordem unida próximo ao “bandejão” [o restaurante universitário], que na época funcionava na esquina das avenidas João Pessoa e Ipiranga”, lembra o economista. “Isso foi antes do Machado Lopes se unir ao Brizola”, salienta. À noite, Silveira seguia para a Praça da Matriz e acompanhava a vigília diante do Palácio Piratini. 

Enquanto Silveira ensaiava formações de marcha com a tropa, a mosaicista Carmen Campetti – estão casados há 41 anos –, ouvia os discursos de Brizola pelo rádio, em Bom Jesus, no nordeste do Rio Grande do Sul, e acompanhava os preparativos do pai e do irmão mais velho para uma eventual guerra. “Meu pai era caçador. Ele e uns amigos foram para Aparados da Serra [hoje um parque nacional e unidade de conservação da natureza] estabelecer um ponto de defesa caso houvesse uma invasão”, afirma. O irmão, embora não fosse contrário à Legalidade, viveu um “alistamento” quase forçado e ficou incumbido de montar guarda na praça de Bom Jesus. Nascida em Caçador, em Santa Catarina, Carmen se declara “brizolista doente”.


Adeus às armas

Coronel reformado da Brigada Militar, Bento Mathuzalen Vasconcelos, 78, era aluno do Centro de Instrução Militar quando a Campanha da Legalidade foi deflagrada. O Centro estava localizado na área da atual Academia de Polícia Militar, na Avenida Aparício Borges, no Partenon, em Porto Alegre. Com pouco mais de cinco meses de aprendizado, Vasconcelos viveu ali, aos 18 anos, o desafio da primeira missão. “Eu era um ‘picolé’, que é como chamávamos aqueles que não haviam prestado o serviço militar. Nossa formação naquela época, porém, era muito semelhante a de um oficial do Exército, pois a Brigada ainda não tinha a função de polícia ostensiva”, afirma o coronel, por telefone, desde Bombinhas, em Santa Catarina, onde se refugiou da pandemia.

Vasconcelos salienta que Jânio Quadros renunciou no Dia do Soldado, praticamente durante uma cerimônia militar. Logo, “uma onda de boatos” chegou às dependências do Centro de Instrução. “Foi aí que o portão caiu’, ou seja, que recebemos a ordem de entrar em prontidão. Montamos um esquema de segurança em torno do quartel, mas não sabíamos se iríamos para a ofensiva ou se permaneceríamos na defensiva.” O esquema incluía cavar trincheiras e erguer espaldões em pontos estratégicos. A prontidão implicava em revezamentos a cada 24 horas.

A tropa de cadetes ocupou posições no Morro da Polícia e recebeu orientação para se defender de um ataque de tanques. A única arma que dispunham para tanto tem origem soviética e é muito familiar a protestos e guerrilhas urbanas: o coquetel molotov. Também contavam com fuzis e metralhadoras, pouco efetivos contra blindados. Além disso, como Vasconcelos soube muito tempo depois, “não tínhamos munição para brigar mais de meia hora”.

A prontidão se manteve entre os dias 25 e 29 de agosto. Próximo ao quartel, os pais de Vasconcelos estavam aflitos, quase sem receber notícias do filho, se não fosse a colaboração de uma namorada do jovem. “Eu namorava essa moça, filha de um oficial do Exército. Uma noite em que eu estava sentinela, ela foi ao quartel. Não resisti: larguei o fuzil e fui correndo abraçar minha amada.” O instante de adeus às armas foi rápido. “Logo apareceu um tenente e ordenou que voltasse ao posto. ‘A coisa está feia’, ele disse.”

No último dia, 29, ocorreu o momento mais dramático, ao receber a ordem de “alimentar a arma”, de se preparar, portanto, para disparar. Felizmente, a ameaça de combate terminou pouco tempo depois, com o general Machado Lopes se aliando à Campanha da Legalidade. “Machado Lopes merecia uma estátua. Teria havido uma luta entre irmãos”, avalia o coronel. Vasconcelos afirma que “não tinha ideia política da coisa”. Ele salienta que a Brigada Militar foi fiel ao governador, a quem está subordinada, embora nem todos os oficiais concordassem com a posição do chefe do Executivo. “O mesmo ocorreu em 1964 [quando a corporação apoiou o movimento que derrubou o presidente Jango]. Fomos leais ao governador [Ildo] Meneghetti.”


O texto a seguir saiu publicado no Matinal de 31 de agosto de 2021

Bandagens para feridos

Maria Joaquina Conceição Rosa

Aos 79 anos, Maria Joaquina da Conceição, a Quina, demonstra vitalidade e lucidez invejáveis. De pele e olhos claros, é quilombola: sobrinha-neta de escravos que viveram em um dos 127 refúgios de africanos e descendentes reconhecidos pela Fundação Palmares no Rio Grande do Sul. Quina nasceu no Quilombo Costa da Lagoa, em Capivari do Sul, distante 87 quilômetros de Porto Alegre, em 1941, no ano em que as águas da Laguna dos Patos avançaram sobre as terras da região, assim como as do Guaíba tomaram conta de boa parte da área central e do Quarto Distrito da Capital. Aos 16 ou 17 anos, não lembra bem, tornou-se babá de uma família de fazendeiros, proprietários de terras em Capão da Porteira, distrito de Viamão, nos limites de seu município natal. Mal a crise em torno da posse de Jango havia começado, a família decide embarcar numa caminhonete Rural Willys e seguir para uma residência na Rua Barros Cassal, em Porto Alegre, a pretexto de visitar parentes.

“No dia seguinte, fecharam a cidade”, diz a idosa, referindo-se à impossibilidade de retornar à fazenda. A capital gaúcha não chegou a ser formalmente isolada, mas o deslocamento tornou-se mais difícil nos dias da Campanha da Legalidade. Serviços públicos e privados foram interrompidos e o fornecimento de combustível ficou destinado à resistência. “Brizola queria briga”, relembra Quina. A jovem, que “não tinha noção do que era uma guerra” e que “estava mais interessada em olhar os meninos bonitos” – os soldados da Brigada Militar, aliada do governador –, se viu inevitavelmente envolvida com o enfrentamento político.

De um instante para o outro, a babá estava produzindo, junto com mulheres da família dos patrões, bandagens para curativos de prováveis feridos na guerra que se ameaçava. “Começaram a trazer sacos e sacos de tecido para dentro de casa, lençóis, fronhas, guardanapos. Tínhamos de cortar nessa largura”, descreve, indicando com as mãos algo em torno de uns 20 centímetros. “Éramos nove mulheres fazendo bandagens, e ainda apareciam os vizinhos para ajudar.”

Além de muito trabalho, Quina lembra a escassez de alimentos. “Na época, não havia os grandes supermercados de hoje, somente armazéns de secos e molhados que logo ficaram mal abastecidos. Na fazenda, os frízeres estavam cheios, mas aqui passávamos fome.” Depois do dia 7 de setembro, encerrada a Legalidade com a posse de Jango e a implantação do parlamentarismo no país, a família retornou a Capão da Porteira. Para Quina, o episódio foi o primeiro do que considera sua “ligação espiritual” com Brizola – anos mais tarde, ao casar, foi morar em dependências da residência do motorista do governador e, mais adiante, comprou um imóvel que pertencia a um empreiteiro do político, o qual, de resto, admira até hoje.


Poti Silveira Campos – Jornalista e escritor

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