Reportagem

Projeto AfroAtivos da escola Saint Hilaire desafia modelos tradicionais de educação

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Projeto AfroAtivos da escola Saint Hilaire desafia modelos tradicionais de educação Foto: Arquivo pessoal

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, localizada no bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, possui uma formação curricular que difere do que estamos acostumados dentro da rede municipal de educação. Com um olhar socioantropológico, a escola realiza desde 2016 uma pesquisa de campo com moradores da região e com as famílias dos estudantes em uma tentativa de compreender quais as necessidades que urgem na comunidade e com o intuito de construir uma problematização do currículo.

Dentro dessa perspectiva, em 2017 surge o projeto AfroAtivos, dentro do currículo da EMEF Saint Hilaire, como opção de contraturno para os estudantes. A criação do projeto é também reflexo da Lei 10.639/03, que inclui nas escolas de ensino fundamental e médio o ensino de História e Cultura Afro-brasileira. O projeto teve início quando a professora – e atual coordenadora do projeto – Larisse Silva de Moraes recebeu uma turma desafiadora.

“Tive muita dificuldade com essa turma. O que não é comum, o que nunca foi comum pra mim. Geralmente consigo ter esse manejo, principalmente com essas turmas mais desafiadoras, sabe? Mas essa turma em especial, assim, foi muito difícil. As agressões físicas, verbais, isso era algo banalizado entre eles. Eles realmente não conseguiam se olhar, sabe, e se enxergar de modo que se fortalecessem”, relata Larisse em entrevista realizada no dia 29 de setembro de 2023.

Para dar conta das demandas e dificuldades da turma em questão, Larisse e a coordenação pedagógica da escola concluíram que o conteúdo teria que esperar e que existiam problemas mais urgentes a serem trabalhados naquele momento. A professora então teve a ideia de começar a organizar assembleias de tempos em tempos com os estudantes, com o objetivo de debater questões que eram relevantes para eles e tentar construir uma coletividade entre a turma.

Depois de certo período realizando os encontros, Larisse pediu que os alunos fizessem uma avaliação sobre o caminho percorrido pela turma durante o ano. Alguns estudantes fizeram desenhos, outros escreveram textos, mas o que mais chamou a atenção da professora foi uma carta de uma aluna de 10 anos: “Quando falam do meu cabelo, eu fico com um aperto no coração, isso não me entra. Eu não consigo acreditar que isso me machuca muito. O que tem no meu cabelo? E eu não sei mesmo”.

A mensagem relatada na carta vai ao encontro da professora Larisse, uma mulher negra que, assim como tantas outras, passou a maior parte da vida enfrentando discursos racistas sobre seu próprio cabelo. Com olhar atento de professora e compartilhando a mesma dor, Larisse percebeu a necessidade que essas crianças têm de se expressar e debater questões que atravessam sua realidade dentro e fora da escola.

Nessa perspectiva, nasce o projeto AfroAtivos, com o objetivo de falar abertamente sobre racismo, atravessado por questões econômicas e sociais. Atualmente a iniciativa é integrada por cerca de 120 estudantes entre o 1º e o 9º ano do ensino fundamental que realizam, dentro e fora da escola, palestras, rodas de conversa, oficinas, contações de histórias e estudos. O projeto não é apenas uma ação momentânea, mas sim um compromisso a longo prazo para construir uma sociedade mais inclusiva e justa.

Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Entretanto, mesmo comprometido com uma causa que faz e dá sentido à vida de tantas crianças e adolescentes, o AfroAtivos enfrenta diversos problemas relacionados à falta de financiamento. Em 2022, o projeto foi aprovado na Mostra Nacional de Robótica, em São Paulo. Dentre todos os selecionados, o AfroAtivos era o único coletivo com uma proposta antirracista. Todavia, a verba para deslocamento do grupo até a mostra não foi viabilizada pela Secretaria Municipal de Educação.

O projeto já recebeu três cartas do arquipélago de São Tomé e Príncipe, na África Ocidental, em diferentes anos, convidando o coletivo para uma contação de histórias bilíngue que faz parte do subprojeto “O Haiti que a mídia não mostra”, também realizado por estudantes do AfroAtivos. Entretanto, o deslocamento do grupo até o local também não foi viabilizado. Em entrevista realizada com a coordenadora do projeto em setembro deste ano, fica evidente o sentimento de frustração constante que habita tanto a professora Larisse quanto os alunos, que enxergam essas oportunidades sendo perdidas.

Além de possuir uma visibilidade internacional de extrema relevância para a rede pública de educação no Rio Grande do Sul, o projeto AfroAtivos também é relevante no contexto da comunidade da Lomba do Pinheiro, atuando diretamente na transformação de trajetórias em uma realidade muitas vezes é dura. Iniciativas como o AfroAtivos desempenham um papel fundamental na preservação de expressões culturais afro-brasileiras, assim como a conscientização sobre a história e realidade contemporânea das pessoas negras na nossa sociedade.


Isabela Haertel é estudante de Pedagogia na UFRGS e bolsista de iniciação científica na área de Sociologia da Educação, na qual desenvolve pesquisa voltada ao Projeto AfroAtivos, orientada pelo professor Luís Armando Gandin. É estagiária de Educação Social em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos com crianças e pré-adolescentes. Gosta de pensar a educação como possibilidade de transformação social e enxerga, tanto no projeto quanto nas vivências diárias, a esperança de um mundo diferente.

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