Carnaval (de maio de) 2022 – Os enredos da Série Ouro
Após mais de dois anos de suspensão devido à pandemia, e ainda buscando recuperar-se de um ciclo de fragilidade institucional, que teve como ponto culminante o cancelamento dos desfiles em 2018, o carnaval está de volta ao Complexo Cultural do Porto Seco. Entidades culturais que fazem parte do imaginário de Porto Alegre e do Estado há mais de seis décadas, as escolas de samba trazem à avenida neste fim de semana a sua arte, exaustivamente trabalhada no último biênio, e extravasam o canto preso na garganta. Se o retorno da “descida da Borges”, a tradicional manifestação carnavalesca ocorrida no Centro, já foi um sucesso absoluto de participação, o mesmo se espera das apresentações no sambódromo.
Na edição passada, tratamos aqui na Parêntese das narrativas preparadas pelas escolas de samba das divisões de baixo, isto é, as séries Prata e Bronze, cujos desfiles estão programados, respectivamente, para os dias 6 e 8 de maio. Neste sábado, dia 7, é a vez da Série Ouro, o grupo principal do carnaval de Porto Alegre, além da tribo carnavalesca Os Comanches, a única remanescente de uma modalidade carnavalesca tipicamente porto-alegrense e outrora hegemônica no carnaval da cidade.
Seguindo a ordem dos desfiles, falaremos a seguir dos enredos e sambas-enredos que serão defendidos na noite deste sábado. Entre as 9 escolas do primeiro grupo, sobressaem-se alguns aspectos: a temática afro-brasileira e a denúncia do racismo (o que, recentemente, teve expressão profícua nos carnavais do Rio de Janeiro e de São Paulo); e os 250 anos de Porto Alegre. Por vezes, ambos os elementos se misturam, realçando a contribuição negra para a formação da cidade. Em comum entre elas, contudo, está a alegria pelo retorno da mais popular e brasileira de nossas manifestações culturais.
Fidalgos e Aristocratas: A escola, fundada no bairro Mont’Serrat e atualmente sediada no bairro Santana, apresenta como enredo “Fidalgos no Mundo da Lua”, fala sobre o satélite que tanto mexe com o imaginário na história da humanidade. A lua é interpretada à luz das cosmovisões ameríndia, afro-brasileira e europeia, simbolizando aspectos como a relação com a natureza e os rituais. O sincretismo religioso fica explícito no refrão, que diz: “É tricolor o manto do meu padroeiro / Saravá, Ogum da lua / Salve, São Jorge Guerreiro!”. O caráter fortemente narrativo da composição (autoria de Bruno Martins e Renan Ludwig) fica evidente como no trecho a seguir: “Ewassa é rei, a cura em ritual / No toque do tambor / Cultura ancestral / Ewe folha voou, é Mawu / Refletida no espelho de Oxum”.
Acadêmicos de Gravataí: A cosmovisão das culturas ameríndias está presente no enredo “Kambô: vem da floresta o ritual de cura da humanidade!”, da Acadêmicos de Gravataí. A floresta é descrita como lugar de sabedoria ancestral e de cura. Os rituais de pajelança simbolizam a esperança de, por meio do sagrado, obter a libertação dos males da terra. Diz a letra, de autoria coletiva de Viny Machado, Leandrinho LV, Nando do Cavaco, Jacopetti, Xandinho Nocera, Giuliano Paim, Rodrigo Godoi, Thiago Tarlher, Diley Machado, Alcides Jr, André Filosofia e Ronny Potolski: “Awe, awe… / O pajé evoca a cura! / Nixi pae… / Transcende a bravura / É fogo, é choro, é vendaval! O homem reflete a face do mal”.
União da Vila do IAPI: Escola de samba que tem a locomotiva como seu símbolo, a União da Vila do IAPI, da Zona Norte da Capital, apresenta o enredo “Na Locomotiva da Cultura Popular fiz Porto Alegre Minha Morada. O Príncipe Negro de Ajudá é Força, Raiz e Fé – IAPI, Batuque, Axé”. O desfile tem como personagem uma personalidade bastante conhecida do carnaval de Porto Alegre: o Príncipe Custódio, homenageado em “Festa de Batuque”, antológico samba do Bambas da Orgia em 1995. Custódio Joaquim de Almeida, conta a historiografia, foi príncipe de Ajudá, no Golfo da Guiné, tendo chegado ao Brasil após disputas locais e a conquista de terras pelos ingleses, em torno de 1864. Primeiramente em Rio Grande e depois em Porto Alegre, Custódio tornou-se importante líder religioso e curandeiro, sendo figura essencial para a formação e difusão do Batuque, expressão religiosa de matriz afro-gaúcha. Na letra, composta por Claudio Russo, Waltinho Honorato, Tico do Gato, Vitor Alves e Zeca Swinguinho, a representação biográfica é direta: “Antes da terra ancestral o menino / Herdeiro do trono de Ajudá / Pouco a pouco moldou seu destino / Pela fé no orixá / O Pai Xapanã, coberto de palha / O Pai Xapanã / A cura dos males / À luz da manhã / Que coroou o seu ori / E o guiou no mar”.
Império do Sol: Com um questionamento contundente, a Império do Sol, de São Leopoldo, vem com o enredo “A carne mais barata do Brasil será sempre a carne negra?”, inspirado no verso da canção (de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette) famosa na voz de Elza Soares. A letra, de autoria de Vinicius Brito, Vinícius Maroni, Saimon e Fábio Canalli, aponta para duas direções: a denúncia do racismo e a resistência negra. As desigualdades sociais e raciais são descritas como marcas da escravidão. Para a sua libertação, há a inspiração e a evocação aos ancestrais que fizeram História, inclusive gaúchos, como os Lanceiros Negros: “Liberte minha gente da favela / Minha preta, salve ela! Oiáiá! E essa dor que espanto no pandeiro / Preso em novo cativeiro sem um luar / E resisto com a força que o preto encara / É Palmares, é quilombo, Zumbi e Dandara / Um lanceiro de Porongos que o tempo não cala / Nem vai calar…”.
Bambas da Orgia: Uma das mais tradicionais de Porto Alegre, detentora do maior número de títulos e a agremiação carnavalesca mais antiga da cidade, a Bambas da Orgia apresenta um enredo de sincretismo religioso e de exaltação da figura sagrada feminina: “No Sagrado e no Profano, Sob as Bênçãos de Maria e Yemanjá”. O eu-lírico é um sujeito piedoso que evoca a “Mãe” na hora da prece, em busca de uma benção divina. Há a valorização da combinação azul e branco, tão característica das representações da santa católica e da orixá africana, e que é também o par de cores da escola. O discurso da canção (compositores: Gustavinho Oliveira, Rafael Tubino, Diego Nicolau, Max Lopes, Diego Bodão e Charles Silva) lembra uma oração: “Oh, mãe…/ A minha pele arrepia / Na oração de cada dia / A gratidão me faz vencer / Oh, águia… / Por ti enfrento tempestades / Te mostro minha lealdade / A ‘razão maior’ do meu viver / Olhar por nós, santa divina! / Eu te vejo no meu manto azul e branco em procissão”.
Restinga: O parque mais conhecido de Porto Alegre é o tema da Estado Maior da Restinga; o Parque Farroupilha, a nossa “popular” Redenção, é o mote do enredo “A Restinga de Alma e Coração, Canta a Redenção na Porto Alegre da Minha Paixão”. A composição do samba (autoria: Marcelo Pujol, Thayson Marques, Jonathan Correa, Barcelos, Leo Machado, Nian Vieira, Rodrigo Fileh e Henrique Trezeguet) valoriza elementos como a rica natureza do parque e construções simbólicas, como o Espelho D’Água, a relação com a vizinhança que o cerca, além de mencionar fatos históricos que ensejaram o próprio nome do espaço. A evocação à ancestralidade negra está presente, ainda que não explicitamente em referência à designação “Redenção” e o acontecimento histórico que a motivou, isto é, a homenagem à Abolição da escravatura no terceiro distrito da Capital, em 1884, sobretudo na letra e musicalidade do refrão. A dubiedade acerca da denominação do espaço público, que oficialmente mudou de nome em 1935, centenário da Revolução Farroupilha, é encarada nos versos: “É Farroupilha em seu nome e distinção / Mas quem te abraça te consagra Redenção”.
Imperadores do Samba: Na comemoração dos 250 anos de Porto Alegre, uma de suas mais tradicionais e vencedoras agremiações homenageia os “palcos” da Capital, com o desfile intitulado “Imperadores do Samba orgulhosamente apresenta: Um espetáculo pelos palcos da cidade”. Na letra do samba, composto por Fagner Presidente, Chico Professor, Fred Feijó, Maninho Veiga e Marcele Cassalha, estão presentes o Theatro São Pedro e a Casa de Cultura Mário Quintana, o Anfiteatro Pôr do Sol (hoje absurdamente ameaçado) e a Orla do Guaíba, os parques da Redenção e Harmonia e o Largo Zumbi dos Palmares, os estádios de futebol, a Esquina Democrática, as ruas que rezam, sambam e protestam. Há belas passagens amalgamando os lugares da cidade com as manifestações sociais, culturais, políticas e religiosas de sua gente: “Arte por toda parte, / Batuques em cortejo à procissão / A pé, a fé e axé se encontram / Harmonia a quem cultua a tradição / Verso e prosa em palavras bonitas / Das folhas, a sombra inspiram o escriba / Histórias se cruzam na esquina / Na luta, no voto, na rima / Amar é resistir, redenção é dar a mão à liberdade / Punho cerrado me aquilombo no Zumbi / A voz que vai subir por igualdade”.
Imperatriz Dona Leopoldina: Com o enredo imperativo “Me respeita!”, a Imperatriz Dona Leopoldina, do bairro Jardim Dona Leopoldina, tematiza a luta das mulheres por respeito e a igualdade de gênero. A diversidade de expressões do feminino é enaltecida: “mãe”, “beata”, “mariposa”, “meretriz”, “gueixa”, “batuqueira”. A letra (autores: Andy Lee, Vinícius Maroni, Vinicius Brito, Victor Nascimento e Lucas Donato) apresenta um eu-lírico que, utilizando a primeira pessoa, se coloca em atitude de reivindicação e busca por empoderamento – seja em que lugar for: “De gala ou de minissaia / De toga, uniforme ou farda / Insisto, eu posso, eu quero / Vencer, liderar, ser votada”. Ao final dessa estrofe, os versos expressam a coragem da mulher perante uma postura masculino opressora: “Sujeito, abaixa esse dedo / Não precisa ter medo / Me respeita!”.
Império da Zona Norte: Encerrando os desfiles da divisão principal, o Império da Zona Norte também celebra os 250 anos de Porto Alegre. A escola, sediada no bairro Navegantes, defende o enredo “Memórias da Zona Norte ressoam tambores imperianos – É o presente dourado ‘pra ti’ mui leal Porto Alegre”. O samba-enredo, composto por Jéferson Lima, Jorge Goulart e Victor Alves, faz um passeio holístico por espaços, pela história e por lugares-comuns de referência à cidade. O refrão principal parafraseia duas das mais icônicas canções que homenageiam Porto Alegre – revestido de um sentido adicional de celebração devido ao retorno após 2 anos: “‘Deu pra ti, baixo astral’ / Tem carnaval imperiano / Quero cantar, sambar em paz / ‘Porto Alegre é demais’ / É o lugar que eu amo”. Próxima à sede da escola, a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, em que também se venera Iemanjá, é lembrada com poeticidade e sincretismo: “No horizonte o espelho do Guaíba refletia / As velas ofertadas a Maria / Senhora, yabá dos filhos seus”.
SERVIÇO: Os desfiles das escolas de samba de Porto Alegre serão transmitidos pela plataforma Cubo Play, detentora dos direitos, com retransmissão pela TVE e pela Rádio ABC FM 103,3 FM (Facebook, Youtube e rádio).
Jackson Raymundo é mestre e doutor em Letras pela UFRGS, autor de Samba-enredo: a poética do Carnaval de Porto Alegre (Atena Editora, 2021).