Resenha

Gavetas de guardados (algumas notas)

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Gavetas de guardados (algumas notas)

Nas gavetas, nos cofres, nos armários, tentamos controlar o incontrolável: a natureza do tempo. Guardamos aquilo que julgamos precioso no momento em que guardamos e, depois… Bom, depois já é outro. O que será o “guardado”? Será que ele fica esperando a mesmíssima baforada de ar, o mesmo sol e nuvens, a mesma luz que o faça acordar do seu sono para renascer igual ao dia em que foi arquivado? Será que a mão que guardou será a mesma mão que o recupera?  

O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem esses “objetos” e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima não teria modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos. Têm, como nós, para nós, por nós, uma intimidade (BACHELARD, p.248, 1978).

Bachelard, em seu livro A poética do espaço, pergunta se haverá algum “sonhador de palavras” que não tenha soado a palavra armário. Essa sensação de que ele, o armário, ou as gavetas, não se abrirão à toa sem antes dar-se à intimidade.  A poética do espaço dos guardados que o livro de Ricardo Bueno traz toca a problemática da memória. Foucault diria que “a memória é modo de ser daquilo que não é mais”. 

Nas frestas dos poemas engavetados aparecem trilhas sonoras, escutas, vozes e leituras. Deixam-se ver, nos cantos e fundos falsos das gavetas, na intimidade.

Na gaveta de guardados

Lenços dobrados

Suspiram em meio às imagens

Em sépia. Afetos de antes

Rompantes da memória

Ao abrir as gavetas de Ricardo dou start na minha memória também: shows, momentos em aulas de música e ensaios reaparecem como vertigem do tempo. “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar”, e mais, quando há provocação. Daí, junto os meus guardados aos de Ricardo.  

Todas as histórias

Nenhum sentido

A vida toda plena de indagações, livros, sentença, palavras, sílabas,

letras…

E nada de compreender o mistério

Porque “mistério sempre há de pintar por aí”, não é mesmo? Os temas invisíveis e inaudíveis do silêncio, do vento, do tempo. A permanência e o efêmero, a morte, a falta, o riso, a insistência e o abandono, o “si mesmo” estão todos ali, compondo esse mistério que é produzir metáforas, ou escrever poemas e tocar o escombro que é: ser.

A gente

Não é só carne e osso

Tem outro

(ou muitos)

Por dentro

Não é só o que se fala

É também o que cala

É também o oco

Do centro

A gente

(Toda gente)

Tem um buraco

Imenso

No peito

Mas também tem bom humor, tem esperança, tem alegria. Tem fazer troça com a palavra: rimar e ser brega. E daí? A gente é mesmo! Está na nossa herança preta da inteligência nagô! Desprender-se dos cânones da arrogância do saber, limpo e branco, que talvez, melhor seria se preto! Se presta, se empresta, cipreste que cresce sem medo. Viu? Eu “afoita” também tenho pressa e, prestíssimo, permito-me rimar bregamente inspirada no que há de cotidiano nas gavetas de guardados. Sabe por quê? Porque

Preciso ir à padaria 

Antes que o sonho acabe 

E só reste um bolo mofado 

Ao lado da empadinha 

De monotonia

Pra que poesia? Pra que arte? Ela só existe porque o mundo já não basta e é preciso reinventá-lo. Tal ato está para além de desejar o bonito ou o feio, pois “para o poeta não tem chuva errada, nem certa”, mas constante, “chuva chovendo e o poeta escrevendo”, buscando o novo de novo. Trabalho permanente. Gesto filosófico tal o de Sísifo ao subir montanhas carregando pedras. Porque fazer novos arranjos para as coisas já vistas, ajeitando as gavetas da memória (e ela acontece no agora) ao separar o que vai ser lembrado e o que ficou para ser esquecido, isso é ato político.  Ricardo Bueno nos lança com seus guardados para debaixo do sol que nos cabe diariamente neste ato político de existência, de manter-se vivo, fluxo em movimento sob “o sol que nos protege”.

A poesia é uma garrafa cheia de inspiração no deserto da existência: sacia a sede de porquês, mas só por um momento. Depois, é preciso insistentemente caminhar, cruzar dunas e sóis e luas e nenhuma sombra, tudo areia e vertigem, alguma aragem, até se alcançar o próximo oásis das palavras, lá no fim (ou no começo) de mais um dia.


SERVIÇO

  • O quê: lançamento do livro Gaveta de Guardados, com 140 páginas e 190 poemas de Ricardo Bueno, com sessão de autógrafos
  • Quando: dia 19/12, às 19h
  • Onde: MEME Estação Cultural – Rua Lopo Gonçalves, 176, Cidade Baixa, Porto Alegre (RS)
  • Quanto: R$ 60 (*)

Simone Rasslan – Cantora, musicista e professora de Música

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